Análise – Miitopia

Desde que foram introduzidos no universo Nintendo, com a Wii, as personagens Mii têm estado presentes em todas as consolas da companhia, de uma forma mais marcada e fundamental para todo o sistema, como na Wii ou Wii U, ou como um complemento meramente opcional, na Switch. Estas, no fundo, são avatares de traços propositadamente simples e pitorescos que podemos personalizar a gosto, quer para que se pareçam connosco (ou como nos vemos) – as mais comuns -, quer para fazer combinações divertidas ou tentar recriar personagens e personalidades conhecidas – de que também há muitos exemplos.

Estes nossos avatares não são, no entanto, meramente uma parte do sistema, e desde os primeiros anos da Wii que vários têm sido os jogos em que estas personagens tomavam, se não um lugar principal, como em Wii Sports ou Wii Music, um lugar secundário ou opcional, como nos mais recentes Mario Kart ou o último Super Smash Bros. É vasto o leque de tipo de jogos em que os Mii, de uma maneira ou doutra, participam.

Até agora, no entanto, podíamos agrupar todos os títulos em que aparecem dentro da comum categoria de jogos casuais – jogos que, devido à sua natureza, são mais indicados para curtas sessões de jogo, muitas vezes em grupo, e que não pressupõe uma grande dedicação por parte do jogador, ou que este esteja sequer muito confortável com os comandos e os seus vários botões. Os Mii eram assim aquelas personagens que assinalavam claramente, quando não representavam uma mera opção adicional, que estávamos perante um jogo casual. Com Miitopia, tudo isto muda de figura.

Miitopia é um RPG por turnos, idêntico aos títulos de várias outras séries de jogos japonesas deste género, em que temos de constituir uma equipa de 4 aventureiros de várias classes (guerreiro, mago, cozinheiro, estrela pop (masculina ou feminina), clérigo ou ladrão, com mais a ficarem disponíveis em pontos mais avançados da vossa aventura). Com esta, temos de salvar o mundo utópico dos Mii, cuja paz é posta em causa pelo Dark Lord, um maléfico e poderoso Mii que, com os seus poderes, rouba as caras dos habitantes deste reino pacífico, fazendo com que as mesmas fiquem aprisionadas a monstros. Estes, agora com caras, ganham vida e são os adversários que vamos encontrando na nossa aventura.

A satisfação de quem recebe a cara de volta.

Com uma introdução destas, poderão ficar a pensar que Miitopia se trata de um título complexo e para poucos, mas tal não é o caso. É antes um dos jogos mais adequados para aqueles que, nunca tendo tido grande contacto com jogos deste género, procuram um RPG acessível e não demasiado complexo, para assim se irem habituando aos mecanismos básicos que os vários jogos desse estilo partilham. Aquilo que o afasta da simplicidade dos títulos em que os Mii costumam aparecer é a profundidade dada a vários aspetos que têm ser conjugados (embora seja bastante fácil fazê-lo) de forma harmoniosa para que a aventura decorra sem percalços, e que passamos a descrever agora.

Primeiro, importa saber como exatamente está estruturado o jogo. Tal como referido, temos uma equipa de 4 elementos, no entanto esta não começa completa logo à partida. No início estamos sozinhos e somos um simples viajante na sua vida quotidiana, entretanto escolhido por uma divindade para pôr término aos planos do Dark Lord. Neste momento recebemos os nossos poderes e escolhemos uma classe. Os restantes membros da nossa equipa vão chegando à medida que vamos avançando na campanha, embora não tardem muito a juntar-se a nós. Todos eles são enviados por esta mesma entidade (que nos vai ajudando ao longo de toda a aventura) e podemos escolher o aspeto, personalidade e classe de cada um dos nossos companheiros.

Com esta equipa vamos avançando através de expedições. Vamo-nos deslocando no mapa, em que cada um dos pontos corresponde a um troço do nosso percurso. No fim de cada um encontra-se uma estalagem, onde os destemidos aventureiros têm o seu merecido descanso. É nestes recortes de caminho que a ação se desenrola, com encontros aleatórios (mas não extremamente frequentes, ao contrário de outros RPGs) com monstros, os tais que têm as caras (ou partes delas) dos Mii afetados pelo Dark Lord. Derrotar os monstros serve assim tanto para ganharem experiência e evoluírem de nível, como para salvar mais pessoas e restaurar a paz. Sempre que matamos um monstro, um contador no canto inferior esquerdo do ecrã mostra quantos Mii já salvámos. Assim que este atingir valores certos (50, 100, 150…), a divindade volta a ajudar-nos e aumenta a quantidade de sparkles (basicamente frascos de pó com os quais salpicamos as nossas personagens, aumentando os seus HP ou MP) que temos ao nosso dispor. Ao derrotar os monstros, recebem ainda gold, unidade monetária do jogo, e grub, de que falamos mais à frente.

Ao longo destas expedições vamos encontrando também tesouros, que nos podem dar tanto gold como grub, ou ainda (muito mais raramente) uma armadura ou arma. Estes mesmos tesouros espalham-se por diversos pontos no caminho, caminho esse que tem várias bifurcações, que nos deixam (quase) sempre no escuro sobre o que iremos encontrar caso optemos por um deles e não pelo outro, o que é um claro convite a repetir esses mesmos “níveis” para aqueles que não gostam de deixar nenhuma pedra voltada para baixo.

Querem uma armadura nova? É na estalagem.

Por fim, chegamos às já referidas estalagens, e aqui há muito mais por fazer do que o já referido descanso. O gold arrecadado serve aqui para entregar a uma das personagens, para que se desloquem á loja e comprem uma arma, armadura ou snack (itens que nos dão um bónus de HP ou MP durante as batalhas). À medida que formos avançando, as armas e armaduras vão ficando mais refinadas, mas também o preço vai aumentando, passando a ser necessário gerir mais cuidadosamente o que compramos. Temos ainda a possibilidade de gastar game tickets (que recebemos através de baús de tesouro ou respondendo a questionários que nos são feitos ao iniciarmos o jogo) em dois minijogos muito simples: uma roleta, em que recebemos vários prémios (recebemos sempre um prémio); e o típico pedra-papel-tesoura, em que, caso ganhemos, recebemos 500 de gold, e possivelmente mais. É também aqui que o grub ganha uso e passamos a explicar melhor do que se trata.

De maneira muito simples, o grub é comida, comida essa que aumenta as estatísticas das personagens. Tal como noutros RPGs, cada classe tem as suas habilidades próprias, sendo por exemplo o guerreiro muito mais voltado para o ataque do que o cozinheiro ou o clérigo. Dependendo destas, terão de ter em atenção as estatísticas dos membros da vossa equipa, e melhorá-las de acordo com as que forem mais apropriadas – por exemplo um mago irá necessitar de mais MP do que um guerreiro, que irá necessitar de mais poder de ataque.

Mas a comida que dão a cada um não depende apenas das estatísticas que querem aumentar, mas também dos gostos de cada Mii. Os Mii são como nós, todos com gostos e personalidades diferentes uns dos outros, pelo que cada “petisco” vai ser mais ou menos apreciado por cada um dos membros da equipa, o que afeta diretamente os efeitos que têm. Se um Mii gostar ou adorar a comida, esta será ainda mais efetiva, enquanto se, pelo contrário, não gostar ou detestar, os efeitos serão reduzidos. Caso a reação seja normal (um “come-se”), não existe nenhum bónus nem nenhuma perda.

Mas o que se pode fazer nas estalagens não se fica por aqui. De facto, falta uma das funcionalidades mais únicas de Miitopia: a relação entre os Mii e a influência das suas personalidades. Como disse, os Mii são mesmo como nós, e cada um tem a sua maneira de ser, para além de, como nós, ter a necessidade de socializar com os outros, o que leva a que para eles a amizade e a criação de laços seja muito importante. Também como já foi dito, dá para escolhermos a personalidade do nosso Mii, o que é feito através de categorias pré-estabelecidas, como carinhoso, energético ou descontraído. Dependendo da personalidade que lhes é atribuída, a própria maneira como interagem com os outros Mii vai-se alterando, o que dá lugar a várias situações engraçadas e que de novo trazem profundidade e variedade a este jogo.

Os Mii também contam as clássicas histórias de terror.

Poderão estar a perguntar-se: «muito bem, mas o que tem a ver isto com a estalagem?». Tudo. Tal como em todas as estalagens, aquela em que ficam os Mii também têm quartos. Mas os quartos são só para dois, e os hóspedes quatro, ou seja terão de dividi-los em dois grupos. E quando dois Mii estão no mesmo quarto, convivem mais tempo e a sua ligação aumenta, podendo até ocorrer eventos engraçados (que podemos ver caso cliquemos numa caixa de voz que nos é apresentada).

As ligações entre os membros da equipa é mesmo muito importante, para não dizer essencial, para o sucesso na vossa aventura. À medida que a amizade entre dois Mii aumenta, um coração vai sendo preenchido e, quando preenchido, o laço fica mais forte. E assim que um laço fica mais forte, alguns efeitos passam a estar disponíveis e são por vezes ativados durante as batalhas. Por exemplo, uma personagem pode querer fazer show-off e mostrar a um dos amigos como é forte, provocando mais dano, ou então pode querer dar uma ajuda durante o ataque, ou elogiar quando outro mata um inimigo… entre muitas outras possibilidades, sempre com o bom humor a que os Mii já nos habituaram.

Mas não apenas na estalagem os Mii ficam mais amigos. São várias as interações entre os personagens durante as expedições, e grande parte delas deixam-nos com um grande sentimento de ternura e com um sorriso na cara, quando não nos fazem mesmo rir. No entanto (e dá grande pena ver), como em todas as amizades, também as suas relações têm altos e baixos, e podem mesmo começar rivalidades e situações de mau-humor ou de ciúmes. Tudo isto é resolvido colocando-os no mesmo quarto para fazerem as pazes, ou usando os poderes da classe pop-star, que está sempre pronta para resolver conflitos (bem… a menos que ela própria esteja de mal com alguém).

Mais do que uma relação apenas entre estas personagens, também nós vamos criando laços com elas e passamos mesmo a querer saber de como estão, se se dão bem uns com os outros, etc. E é raro encontrar um videojogo que crie uma relação entre o jogador e as personagens como a que Miitopia consegue criar … e por esta mesma razão é difícil de perceber o porquê de a Nintendo (não vamos entrar em pormenores de quais as razões para isto acontecer na história, mas são um pouco triviais) decidir que devemos ficar, por 2 vezes, sem a nossa equipa e recomeçar do 0 (do nível 1 mesmo), tendo de escolher uma nova classe e depois finalmente novos companheiros de equipa. Depois de um grande laço criado com a primeira equipa, é difícil arranjar um espaço igual no nosso coração para as segunda e terceira, e é até um pouco frustrante perceber que não podemos voltar atrás e reviver os dias de glória que tivemos com os nossos primeiros companheiros.

A desilusão não é apenas do nosso Mii, é também nossa.

Passo a explicar. Tal como em outros RPGs, à medida que vamos evoluindo de nível, mais habilidades, ataques e combinações vamos tendo ao nosso dispor, e é exatamente esse um dos grandes atrativos dos RPGs, ir ficando cada vez mais espantado e fascinado com os ataques, habilidades e evolução no geral das personagens que no início infligiam 4 de dano e agora já infligem 40, por exemplo. Ter estas duas quebras não afeta apenas a nossa relação com a equipa, mas também quebra o ritmo de jogo, e faz parecer que voltámos ao início. O que não é muito agradável. Compreendemos que a intenção da Nintendo tenha sido provavelmente a de que explorássemos mais classes (incluindo as que vai adicionando), mas com certeza haveria outras maneiras de o fazer.

Uma vez que falei de combos, combinações, ataques, habilidades e efeitos, passo agora a explicar de maneira muito breve o combate do jogo, que é muito simples e semelhante ao de outros deste género, apenas com uma diferença: apenas controlamos o nosso Mii. Sim, o resto da batalha é automático, mas é engraçado de ver e não é por isso que deixamos de ter sobre ela pelo menos alguma influência (como com as sparkles, ou movimentando personagens para um local seguro, onde podem ficar a recuperar por alguns turnos). Caso queiram, podem ainda optar por acionar a opção de auto-battle.

É especialmente engraçado ver como alguns mal entendidos ou relações saudáveis de amizade interferem com o combate (através dos efeitos mencionados, e outros). Tal como é engraçado ver como a própria personalidade dos Mii afeta o seu estilo de luta. Uma personagem carinhosa poderá ter pena do adversário, uma energética poderá querer fazer uma investida rápida e tropeçar pelo caminho, etc. são mesmo muitos os pormenores dados a este jogo e a estas relações. Com vários pormenores engraçados e situações inéditas a acontecer tanto nas estalagens, como nas expedições e no próprio combate, Miitopia apresenta-se como um jogo extremamente refinado e bem executado.

Também refinadas e bem executadas estão a banda sonora e direção artística do jogo, que estão em plena sintonia com todo o tom do jogo, e que tornam esta experiência ainda mais memorável. Falando em particular da banda sonora, esta é bastante variada e apresenta temas completamente em sintonia com os cenários (que, como podem calcular, são também eles muito variados). Desde temas relaxantes e que fazem lembrar algumas peças calmas de Animal Crossing ou Pokémon, até músicas agitadas, quer de modo festivo, quer de modo tenebroso, variedade e qualidade é o que não falta a esta trilha sonora. E os cenários acompanham-na firmemente e sem se deixar para trás.

Iwata vem ao nosso salvamento.

Para além de tudo isto, é importante notar como todas as aventuras serão diferentes umas das outras, a variedade é imensa. E isto porque podemos escolher o aspeto e  nomes de todas as personagens, criando situações verdadeiramente hilariantes. Até mesmo os vilões e personagens principais podem ser escolhidos. Por exemplo, o meu Dark Lord chama-se Feernandum e tem uma cara idêntica à de Fernando Pessoa, e o Sage (personagem importante e que vos irá ajudar ao longo da aventura) é o Mr. Iwata, antigo presidente da Nintendo. É possível imaginar uma situação mais caricata do que Beethoven aos murros a uma gorila cor-de-rosa chamada Rosalina? Não sei.

Opinião final:

Confesso que quando Miitopia foi apresentado nas Nintendo Direct, não fiquei muito convencido e, por ter as personagens Mii como figuras principais, fiquei sempre de pé atrás. Talvez por isso mesmo, Miitopia foi uma surpresa muito agradável, e uma jornada que gostaria de repetir, provando que personagens Mii implicam sim um bom humor e situações caricatas, mas não necessariamente que estamos perante um jogo casual. Mesmo com um estilo e jogabilidade simples, Miitopia é um jogo bastante profundo, sendo a escolha perfeita para quem quiser começar a aventurar-se no mundo dos RPGs, seja qual for a idade.

Do que gostamos:

  • Banda sonora e direção artística bem executadas e relacionadas;
  • Enorme variabilidade, conseguida através da personalidade, aspeto, classe e relações entre os Mii;
  • Inúmeras situações caricatas que nos deixam de bom humor;
  • Sistema de jogabilidade bastante simples, mas, ao mesmo tempo, muito profundo.

Do que não gostamos:

  • Dois momentos na história em que existe quebra do ritmo da ação e da relação com as personagens.

Nota: 9/10

Miitopia encontra-se disponível para venda a partir do dia 28 de julho, em exclusivo para a família de consolas Nintendo 3DS.