Análise – The Surge

Como muitos já devem ter percebido por análises anteriores, sou um grande fã do género RPG como um todo e tenho uma especial paixão pela série Dark Souls, já que esta foi a responsável por eu passar a olhar para este tipo de videojogos doutra maneira. Eis que em 2014, a Deck 13 Interactive lançou Lords of the Fallen, que prometia trazer vários elementos da franquia Souls, mas infelizmente muito dessa promessa ficou apenas na teoria, especialmente pelo factor de não ser um jogo que ia além da inspiração.

Em 2015, o estúdio começou o desenvolvimento daquele que seria considerado o sucessor espiritual de Lords of the Fallen, um RPG de ação num mundo cheio de máquinas, chamado The Surge e que foi lançado em maio deste ano. Mas será que esse tempo foi suficiente para o estúdio aprender com os erros do passado e trazer um jogo com identidade própria?

A premissa apresentada ao jogador em The Surge pode ser descrita como um “grande queijo suíço utópico”. Warren, o protagonista do jogo, é um homem desempregado num mundo que caminha a largos passos para o caos. Atraído por um oferta de emprego ambiciosa, ele aceita trabalhar na CREO, uma empresa de alta tecnologia empenhada em salvar o mundo.

Para aumentar a eficiência dos trabalhadores, todos eles ganham um exoesqueleto industrial que é conectado aos seus corpos. Até aí nada de tão anormal… até que algo começa a correr terrivelmente mal. A anestesia claramente não tem efeito e o nosso protagonista recebe o seu exoesqueleto da pior maneira possível, ou seja, a sentir cada intervenção feita no seu corpo, até desmaiar por causa das dores. Uma cena que curiosamente já nos mostra que The Surge definitivamente não será um «passeio no parque».

Ao acordar, o protagonista apercebe-se que um robô está a tentar arrancar a sua perna, e algo realmente terrível aconteceu nas instalações da empresa. Máquinas e humanos tornaram-se hostis e de repente passamos a estar num mundo onde nada quer ser nosso amigo, tudo nos quer matar, e da maneira mais dolorosa possível. E é com esta introdução extremamente positiva que somos realmente apresentados ao universo no qual vamos passar longas e consideravelmente difíceis horas de jogo.

A história do jogo é um amálgama de diversos temas apresentados em livros, bandas desenhadas e filmes de ficção cientifica, como por exemplo No Limite do Amanhã, que por sua vez é inspirado na série de light novels japonesas escritas por Hiroshi Sakurazaka, “All You Need is Kill”. Estamos num futuro distópico, mas até bem próximo da realidade. Anos de exploração de recursos naturais apenas a pensar no desenvolvimento pessoal e obtenção de lucros levaram o planeta ao inevitável aquecimento global (essa analise foi escrita um dia após o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciar que o país vai abandonar o Acordo de Paris). Para além desta inconsequente exploração, o mundo enfrentava guerras, fome, doenças, enquanto do outro lado da “balança social” houve um grande avanço tecnológico, que em parte dá origem aos nossos maiores problemas, como vimos, mas que, ao mesmo tempo, é o responsável por ainda estarmos vivos.

O jogador é literalmente colocado na pele de Warren, já que ambos não sabem o que aconteceu entre a traumática intervenção e o momento em que foi acordado, mistérios esses que vão sendo desvendados a pouco e pouco no decorrer do jogo. De maneira mais clara que o seu antecessor e que os jogos da franquia Souls, a história é contada através da interação com NPCs e ficheiros de áudio encontrados pelas instalações da CREO. Além disso, também é utilizado como recurso narrativo, de maneira até bem criativa dentro deste universo tecnológico, a troca de e-mails entre funcionários e vídeos de entrevistas e motivacionais, já bem conhecidos de quem aprecia este estilo de histórias.

Não esperem, no entanto, que esta seja a história mais profunda e desenvolvida que já tiveram a oportunidade de vivenciar do começo ao fim, diferentemente de Dark Souls (que não entrega praticamente nada e cabe ao jogador descobrir por conta própria a história), The Surge lança muitas perguntas que vão sendo respondidas lentamente e com personagens muitas vezes genéricas, contrariando os minutos iniciais, que promovem uma catarse de sentimentos. No entanto, não se preocupem demasiado, este também não é um jogo completamente dececionante neste ponto, podem acreditar.

A ambientação de The Surge foi pensada ao detalhe e apresenta ao jogador um cenário que combina na perfeição alta tecnologia, vários sectores de uma grande empresa e destruição massiva. O jogo vai levar os jogadores numa viagem por diversos setores das instalações da CREO, uma empresa realmente imponente, setores esses que estão ligados por estações de transporte.

Preparem-se para cenários orgânicos de grandes dimensões que podem ser explorados tanto vertical como horizontalmente, com diversos caminhos, segredos, atalhos e ligações entre si, formando quase que um grande labirinto, que muitas vezes contém locais que apenas poderão ser explorados ao atingirem determinado nível. Não haverá, no entanto, um mapa para se localizarem, algo que pode frustrar alguns jogadores menos habituados a jogos deste estilo. Há que ressaltar também que o jogo oferece diferentes ambientações, com locais mais próximos a uma linha industrial, a um departamento médico, uma área destinada aos executivos e até áreas que até então eram destinadas a transmitir uma ideia paz e que agora transmitem apenas a morte.

No entanto, lembrem-se que um jogo não se faz apenas do que está a ser jogado, mas também da emoção que o jogador terá enquanto está naquele universo, então apesar de ambientes imponentes, a sensação de claustrofobia será bem presente durante todo o jogo, onde locais abertos serão raros e salas e corredores estreitos serão uma constante, algo que acredito ter sido desenvolvido pela Deck 13 justamente a pensar nos inimigos, que possuem pontos cegos para surpreender o jogador e trazer um sentimento que muitos fãs de Dark Souls tiveram no primeiro jogo, quando tiveram de explorar As Catacumbas.

Graficamente, The Surge merece longos aplausos, pois tal como Lords of the Fallen possui uma qualidade gráfica considerável. Porém, não vão à espera de cenários vivos com vegetação, animais e raios de sol a atravessar as folhas das árvores, o que vão encontrar em The Surge é um ambiente industrial, onde a cor predominante será o cinza das placas e componentes metálicos. A iluminação, aliada aos efeitos de luz e sombra, também merece um grande destaque, já que o exoesqueleto possui uma lanterna que vai ajudar a movimentarem-se em ambientes com pouca luminosidade. Por estar ligada a um objeto em constante movimentação era de se esperar uma resposta inconstante da luz, no entanto, a resposta é praticamente perfeita e adapta-se muito bem a todos os movimentos do exoesqueleto, promovendo ainda um clima constante de tensão durante os combates, já que de maneira intencional a iluminação é direcionada. Isto significa que ao invés de um raio de luz aberto, temos um género de foco, forçando o jogador a mover-se para onde está a iluminar.

Mas se pensam que é na qualidade gráfica que The Surge ganha todos os prémios, enganam-se: é nos combates onde o verdadeiro concerto de Heavy Metal acontece (e quando falamos num jogo onde metais são constantes, isto ganha uma outra dimensão). Quando foi originalmente apresentado, o jogo dava uma sensação de movimentação pesada e pouco fluida, porém isso não se reflete no gameplay, já que existem várias armas, e é cada uma que define exatamente esta movimentação, ou seja, escolher armas mais pesadas vai causar muito mais dano, mas reduzir a rapidez da vossa movimentação, enquanto que armas mais leves vão dar um dano reduzido, mas aumentam a agilidade.

Para os jogadores que já vêm da franquia Souls e/ou Nioh, as mecânicas de combate são bem familiares: ataque, esquiva e defesa com cada um deles a consumir vigor, que, quando totalmente gasto, deixa o personagem vulnerável por alguns segundos. Aqui, no entanto, além da esquiva tradicional em diferentes direções, também é possível pular e agachar, o que permite novas opções de defesa e contra-ataque.

Algo que diferencia The Surge dos outros jogos do seu género, é que não temos botões para ataque forte e fraco, esses foram substituídos por botões para ataque horizontal e vertical. Esta mudança era necessária para introduzir uma mecânica extremamente aprazível, que permite ao jogador desmembrar os inimigos (sim, isto pareceu um pouco sádico, mas experimentem e vão entender). Ao focar um inimigo, o jogador pode escolher qual a parte do corpo que pretende atingir, seja os braços, pernas, cabeça ou tronco. Isto acaba por influenciar na movimentação da personagem e deixa clara a necessidade de ataques verticais e horizontais, de maneira a cada um deles ser mais efetivo em cada situação.

Ao atacar então constantemente uma determinada parte do corpo protegida por uma armadura ou com alguma arma, existe uma possibilidade do jogador arrancar aquela parte, o que permite obter aquela peça de armadura ou arma, que posteriormente pode ser utilizada e/ou aprimorada. Esta mecânica dá ao jogo uma sensação constante de recompensa e satisfação, pois aquilo que inicialmente era o vosso maior problema contra um inimigo, agora pode ser mesmo o vosso maior trunfo contra outros. Tudo tem, no entanto, um custo…

Partes do corpo protegidas com armaduras recebem consideravelmente menos dano das armas, e dão mais estabilidade aos inimigos em combate, o que acaba por prolongar os combates e o gasto de vigor, o que também vai deixar aberturas para contra-ataque do inimigo. Assim, o jogo ganha uma vertente tática também, onde cabe ao jogador analisar se vale a pena arriscar arrancar aquela peça ou prefere adotar uma posição mais cautelosa e eliminar aquele inimigo de forma rápida, algo que, numa situação com vários inimigos, pode ser o mais indicado.

Por ser um jogo que tem como foco a tecnologia num mundo real, magias ou elementos sobrenaturais não tinham espaço em The Surge, porém, para desmembrar um inimigo com sucesso, será necessário atingir um certo nível na barra de energia que fica localizada logo abaixo da do vigor. Esta barra é preenchida a medida que o jogador atacar os inimigos com sucesso, e, quando atinge o nível máximo e a saúde do inimigo estiver baixa, ao pressionar um botão inicia-se uma animação onde Warren irá arrancar de maneira impiedosa e sangrenta a parte do corpo escolhida, das mais variadas maneiras. Para proporcionar uma dificuldade ainda maior, esta barra não é permanente, sendo reduzida ao longo do tempo em que o jogador não atacar nenhum inimigo. Isso faz com que o jogador seja incentivado a escolher uma abordagem mais ofensiva, o que pode também levar a erros mais frequentes ou combates menos estratégicos, o que vai resultar numa morte rápida.

Estas e outras mecânicas novas implementadas pela Deck 13 Interactive dão a The Surge uma identidade própria, o que lhe permite assim afastar-se dos jogos no qual o estúdio se inspirou, sendo ainda uma resposta às críticas que Lords of the Fallen recebeu de ser apenas um “mero clone” da franquia Souls.

No entanto, sendo um jogo que tem estas inspirações, está a faltar qualquer coisa, não? Qual o risco de se morrer em The Surge? Enquanto em Dark Souls o jogador perdia as suas almas, em The Surge são as sucatas acumuladas que são deixadas para trás no local onde morreu. Desta forma, o jogador terá um tempo especifico para voltar até este local e recuperá-las, ou serão perdidas para sempre. É possível prolongar ligeiramente este tempo por cada inimigo que matarem no caminho, o que vos dará a possibilidade que, mesmo muito longe do local onde morreram, ainda possa, lá voltar. Resta só saber se são capazes de o fazer sem morrer novamente pelo caminho. Para aqueles que não quiserem arriscar, haverá também estações onde pode armazenar a sucata recolhida, de maneira a não a perderem. No entanto, os jogadores mais corajosos podem arriscar carregar uma grande quantidade de sucata, o que permite receber alguns bónus, assim como acontecia com as humanidades em Dark Souls.

Os inimigos em The Surge dão sensações contraditórias ao jogador durante toda a jornada. Não existe uma grande variedade de opositores, estando estes basicamente limitados a humanos e máquinas, com pequenas mudanças no seu aspeto e nos pedaços de armadura e armas que carregam. No entanto, cada maquina terá um padrão de ataque e pontos fracos únicos, o que vai forçar o jogador a optar por combates mais táticos e a experimentar diferentes abordagens, tanto de movimentação como de escolha de armas.

Porém, foi nos bosses que fiquei mais dececionado, já que não existe uma grande quantidade de combates contra bosses, sendo o destaque desse tipo de combate a sua localização e o comportamento de cada um. Assim como em Lords of the Fallen, haverá objetivos opcionais ocultos para o combate com cada boss, em que, caso os concluam, receberão uma maior recompensa. Além disso, cada boss ao ser derrotado irá deixar-vos com uma arma única, o que faz com que cada combate seja especial.

Ao contrário de outros RPGs, subir de nível em The Surge é feito de maneira um tanto incomum, dado estar associado ao exoesqueleto, ao invés de ser representado por pontos que seriam distribuídos em diferentes atributos da personagem. A cada novo nível a potência do núcleo do exoesqueleto aumenta e cada peça da armadura terá um custo de potência, sendo que peças com melhores atributos têm um custo maior. O jogador é assim levado a gerir constantemente aquilo que vai utilizar, com base na potência do núcleo que tem disponível.

A saúde do protagonista, o seu vigor, força e outros atributos não podem ser alterados através do nível, para sofrerem alterações o jogador terá que utilizar itens chamados implantes, que têm efeitos muito variados e que podem trazer benefícios fixos ou ativos, mas que consomem energia. Por exemplo, temos implantes que dão um aumento na saúde da personagem ou a habilidade de não sofrer dano por intoxicação. Cada um dos implantes tem um custo de potência do núcleo, havendo um espaço limitado de quantos podem ser utilizados, que posteriormente podem ser ampliados à medida que a personagem atinge determinadas potências de núcleo.

Além dos implantes, que melhoram de certa forma o protagonista, também é possível melhorar armas e armaduras, através dos equipamentos que forem recolhendo dos inimigos derrotados, que poderão servir para melhorar o vosso próprio equipamento. Um fator interessante e presente em outros jogos de RPG, é que ao utilizarem certas peças de armadura em conjunto, recebem bónus, como melhorias na saúde do personagem ou resistência a determinados ataques.

A nível técnico, The Surge é uma agradável e até inexplicável surpresa, já que, ocupando apenas cerca de 5.79GB na versão PlayStation 4 analisada, consegue oferecer uma experiência praticamente sem bugs, sendo que mesmo os poucos encontrados não comprometem em nenhuma medida a experiência de jogo. Trata-se de um título sem quedas no rácio de fotogramas, com loadings rápidos e com uma grande qualidade gráfica, como já mencionado anteriormente, que com certeza só é possível graças ao motor de jogo FLEDGED, desenvolvido pela própria Deck 13 Interactive e que em determinados momentos proporciona uma fidelidade visual que faz lembrar em muito obras do realizador Neill Blomkamp (Distrito 9).

Num jogo deste género, a longevidade é sempre bastante variável, uma vez que o tempo que demora até ser concluído vai depender muito da capacidade, habilidade e familiaridade do jogador com jogos semelhantes. No entanto, quem gostar de explorar os cenários, conseguir as melhores armas, cumprir todos os objetivos e tenha uma familiaridade com o estilo, conseguirá terminar o jogo entre 25-30 horas. Tempo este que pode ser prolongado, devido aos fatores já citados.

A nível sonoro não existe nada muito concreto a adicionar, já que, ao contrário de jogos como The Witcher 3: Wild Hunt, The Surge não tem uma banda sonora própria, até mesmo pela sua ambientação não permitir tal coisa. A atenção dada aos detalhes merece, no entanto, o reconhecimento dos jogadores, sendo possível ouvir até mesmo o som mecânico das engrenagens a movimentarem-se no exoesqueleto de Warren, além dos sons específicos de cada máquina.

Opinião final:

Em resumo, quando em 2014 joguei Lords of the Fallen fiquei muito dececionado já que, sendo um fã de RPG e da franquia Souls, tinha grandes expectativas para o jogo, e quando ouvi falar a primeira vez que a Deck13 Interactive estava a trabalhar num novo RPG, fiquei com muitos receios. Mas The Surge é a prova de que os estúdios conseguem aprender com os seus erros e oferecer um jogo tecnicamente perfeito, robusto, com grande qualidade gráfica e novos elementos que funcionam na perfeição dentro de um universo próprio.

Apesar de ainda ter como inspiração na franquia Souls, este não é de todo uma cópia, mas sim um jogo que conseguiu encontrar a sua identidade própria e está mais que pronto para reclamar o seu lugar no coração dos fãs deste género. A adição de elementos táticos ao jogo trouxe algo que até então era banal aos jogadores de RPG, sendo que agora a simples tarefa de derrotar um inimigo também exige do jogador um pensamento estratégico e analítico de se o custo não é demasiado alto para a sua recompensa. Apesar de trazer uma história lenta, com NPCs nem sempre tão interessantes e uma fraca quantidade de bosses, The Surge é um jogo obrigatório para qualquer fã de RPG e de jogos com dificuldade alta, tensão constante e diversão que tem como base a recompensa pelos seus atos.

Do que gostamos:

  • Um jogo tecnicamente quase perfeito;
  • Uma qualidade gráfica incrível e que foi adaptada na perfeição ao ambiente em nosso redor;
  • Um jogo que exige do jogador uma abordagem tática e visão clara do que deve fazer em cada situação, para que não tenha uma morte certa;
  • Sensação de recompensa pelas suas ações, semelhante a jogos como Dark Souls e Nioh;
  • Um jogo que corrigiu os erros do seu antecessor e conseguiu encontrar o seu lugar num estilo de jogo cada vez mais banal.

Do que não gostamos:

  • A pouca quantidade de bosses no jogo;
  • A história por vezes tem um ritmo lento que pode inclusive fazer muitos jogadores perderem o interesse;
  • Pouca variedade de inimigos.

Nota: 9/10