Originalmente lançado em 2011 no Japão (e em 2012 na Europa) para a PlayStation 3 e Xbox 360, Catherine foi o primeiro jogo a apresentar ao público o estilo bastante peculiar da Atlus em alta definição. Personagens, criaturas e situações bizarras e mesmo kafkianas não poderiam faltar num jogo da editora de Shin Megami Tensei e Persona, e Catherine chegou bem repleto delas, adicionando a esta mistura o seu principal tema: as relações amorosas e a complexidade da vida adulta.
Passados quase sete anos, prepara-se para chegar à PlayStation 4 e PlayStation Vita uma versão remasterizada deste jogo de quebra-cabeças – Catherine: Full Body – que traz ainda novo conteúdo, incluindo mais uma fonte de perturbação para a relação de Vincent (o protagonista) com a sua namorada, Katherine: um novo interesse amoroso, Rin.
Quem, no entanto, usa o PC como sua principal plataforma para jogar, passou ao lado deste título da Atlus até recentemente, mais precisamente até dia 10 de janeiro, quando Catherine Classic passou a estar disponível na Steam. Este lançamento trata-se simplesmente de um port do título original, sem qualquer conteúdo extra, e infelizmente parece que será a única edição a que quem joga na Steam terá acesso. Se tal for o caso, parece tornar-se legítima a questão pelo porquê de lançar esta versão agora, e não a mesma que está prestes a chegar às plataformas da Sony.
Pondo de lado a questão de se o lançamento de Catherine Classic faz muito sentido neste momento, e uma vez que esta edição consiste no jogo original sem alterações de grande relevo, iremos aqui analisar, antes, como se comporta o jogo agora com praticamente 8 anos em cima (considerando a data de lançamento original no Japão).
Tendo já acompanhado Vincent na sua semana diabólica quando Catherine passou a integrar o catálogo de jogos mensais do PlayStation Plus em maio de 2013, posso felizmente afirmar que o jogo era bastante divertido na altura, que continua a sê-lo, e que envelheceu bem.
Para que se faça justiça numa avaliação a um videojogo, é importante notar quais as dimensões mais importantes ou mais destacadas no mesmo. Tome-se um exemplo claro: embora tanto New Super Mario Bros., como Final Fantasy XV tenham enredo, seria incorreto numa análise dar o mesmo peso a este aspeto na avaliação de um e de outro- obviamente que o enredo em New Super Mario Bros. desempenha um papel muito menos central do que num Final Fantasy da série principal.
Voltando a Catherine, sendo este um jogo de quebra-cabeças em que o grande destaque vai para a narrativa e as várias ramificações que esta pode seguir com base nas escolhas que vamos fazendo, dar um breve enquadramento (o mais livre de spoilers possível, embora o que se segue contenha alguns bastante genéricos a respeito da fase inicial do jogo) do universo do jogo e da estrutura do enredo ajuda bastante na avaliação.
Todo o jogo nos é apresentado como se de um filme interativo se tratasse, apresentado no decorrer de um programa de um canal fictício de nome Golden Playhouse. Neste filme acompanhamos Vincent, um homem de meia-idade que se vê vítima de pesadelos angustiantes em que deve escalar construções de blocos e evitar cair – uma queda no pesadelo equivale a morrer na vida real. Enquanto é perseguido por estes pesadelos, Vincent é ao mesmo tempo confrontado com a vontade da sua namorada, Katherine, em dar o próximo passo na sua relação (casamento), e com a aparição da misteriosa e sensual Catherine, que seduz Vincent e o leva a um predicamento.
Em grande medida o jogo coloca-nos sempre entre duas opções: Katherine, ou Catherine; Ordem e Paz ou Liberdade e Caos. E neste sentido as nossas escolhas são avaliadas de acordo com esse padrão, sendo as ações que levam à manutenção da relação de Vincent com Katherine associadas à piedade e virtude, e as ações que levam à traição de Katherine com Catherine associadas aos prazeres corporais e ao pecado. Infelizmente esta que é uma forma de jogar com conceções religiosas do bem e do mal acaba por nos colocar por vezes perante falsos dilemas (ou seja, apresenta-nos apenas duas opções, quando existem outras).
Poder-se-ia dizer que tal advém da própria natureza dicotómica do sistema, mas tal não é o caso. Em grande parte do jogo, este sistema funciona perfeitamente. Simplesmente existem alguns pontos em que tal não acontece. Por exemplo, entre cada estágio dos pesadelos (cada estrutura que temos de escalar corresponde a um estágio, e teremos de escalar várias durante cada noite) é-nos colocada uma questão sobre os nossos próprios valores, e a nossa resposta é posteriormente comparada às respostas dadas pelos outros jogadores. Ora, algumas destas interrogações obrigam-nos a escolher entre dois extremos, e podemos não concordar em igual medida com um e com outro, o que torna algo arbitrária a nossa escolha por um ou outro. Embora, felizmente, muitas das questões escapem a este problema, não deixa de ser de lamentar que nem todas o consigam evitar.
Uma outra questão é a maneira como o jogo caracteriza as personagens. Sente-se que, de forma a estabelecer mais uma dicotomia, as personagens se encontram bastante restritas aos estereótipos associados aos géneros a que pertencem. As preocupações das personagens que vamos encontrando não fogem muito a lugares-comuns, embora cada uma seja única e tenha as suas peculiaridades. Curiosamente, as personagens mais chegadas a Vincent (Katherine, Catherine e o seu grupo de amigos) são as mais genéricas, sendo os estranhos que Vincent vai encontrando e ajudando, conversando com eles nos pesadelos e no bar, bem mais trabalhados, tendo problemas que realmente os individualizam.
Ainda sobre a caracterização das personagens, não posso deixar de comentar algo que me escapou no jogo original (ou de que já não me lembrava), mas aqui surgiu como algo negativo. A empregada do bar que Vincent e companhia frequentam, Erica, é, como se vai descobrindo à medida que o jogo avança por certas conversas, uma mulher transgénero. Embora no início nos seja apresentada de forma natural, sem qualquer referência a este aspeto, a maneira como vamos descobrindo este facto sobre Erica parece indicar que esta apenas tem esta peculiaridade para que a mesma sirva como justificação para supostos momentos cómicos ao longo do jogo, culminando em piadas fáceis, gastas e de mau tom.
Haveria muito que dizer sobre que mensagem transmite Catherine com a presença destes estereótipos e lugares-comuns, e se tal diminui a qualidade do jogo. Retirar pontos a este jogo simplesmente por esse motivo implica partir de uma posição política e avaliar o mesmo com base na sua adequação à mesma. Embora ache que esse tipo de considerações seja justificado, e tenha a minha própria posição a este respeito, prefiro manter, como em todas as análises que publicámos até agora, um tom isento. Tal, contudo, não significa que não se possa criticar Catherine pela mensagem que comunica, e (embora possa parecer contraditório com base no que disse em cima) que se possa mesmo afirmar que a qualidade do mesmo (neste ponto de vista politicamente neutro) seja negativamente afetada.
A forma como Erica é caracterizada nas partes finais do jogo não é apenas transfóbica, é também um exemplo de mau design e de o que não se fazer na construção de uma personagem num jogo focado essencialmente na narrativa. Do mesmo modo, os estereótipos que o jogo apresenta não são simplesmente passíveis de crítica, mas são também algo que limita a experiência no geral, e em particular as personagens, acabando por as tornar genéricas e vazias. Estes pontos são importantes num jogo focado na narrativa, e devem ser apontados, pois afetam a experiência de qualquer um com o mesmo, seja qual for a sua perspetiva política.
Tirando estes pontos negativos, o jogo apresenta-se bastante capaz. Os quebra-cabeças com que nos vamos deparando nos pesadelos apresentam-se desafiantes e variados, tanto pelo sentimento de urgência de escalar rapidamente as estruturas de blocos, como pela introdução de blocos diferentes, como ainda pelo raciocínio que alguns deles exigem. Apesar de algumas personagens um pouco mal desenhadas, a narrativa continua a ser bastante interessante, cativando-nos e levando-nos a querer ver mais e mais, desde os momentos iniciais, até que levamos Vincent a um dos vários finais possíveis. O jogo na PlayStation 3 tinha um aspeto fantástico, e continua a tê-lo, não fossem jogos com um estilo mais cartoon e de anime, jogos que envelhecem bem – em especial, as cinemáticas parecem não ter envelhecido o mínimo que seja. Imensos detalhes tornam o mundo de Catherine mais vivo, como o facto de Vincent poder ficar bêbado (o que leva a que fique mais veloz nos pesadelos), poder receber e responder a mensagens no telemóvel, poder trocar a música ambiente do bar numa jukebox, poder jogar uma versão retro (e com algumas diferenças) dos quebra-cabeças de Catherine numa arcade do bar, entre outros.
Finalmente, e não podia de forma nenhuma deixar escapar este ponto… Catherine tem uma banda sonora fantástica, constituída tanto por composições originais, como por versões de músicas clássicas, como o terceiro movimento da 5ª sinfonia de Beethoven, ou um remix do Revolutionary Étude de Chopin. Estas peças acompanham o que se passa no ecrã na perfeição e são absolutamente essenciais para criar a ambiência que envolve os momentos mais marcantes e emocionantes do jogo. Quando joguei Catherine pela primeira vez, fiquei em êxtase com a banda sonora do jogo, e a questionar-me pelo porquê de não existirem mais jogos que apresentem peças clássicas e formidáveis como as mencionadas. Agora que o revisito quase 6 anos mais tarde, a experiência é a mesma, e continuo a desejar que mais jogos apresentem uma banda sonora como a de Catherine, que continua a ser simplesmente das melhores que já encontrei num videojogo.
Opinião Final:
Catherine Classic representa um simples relançamento do jogo de quebra-cabeças da Atlus originalmente disponível para a PlayStation 3 e Xbox 360. Passaram-se, no entanto, praticamente 8 anos desde o lançamento original, pelo que a questão de se o jogo continua a divertir e a ser uma boa experiência acaba naturalmente por ser colocada. Felizmente, a resposta é um redondo sim! Acompanhar Vincent na sua tortuosa semana repleta de pesadelos, acompanhados por uma vida amorosa complicada e diversas situações dramáticas, continua a ser ótimo.
Os quebra-cabeças são desafiantes e divertidos; o jogo encontra-se repleto de diversas mecânicas e detalhes que tornam o mundo vivo e a experiência mais rica e viciante; a trama prende-nos desde os primeiros momentos; e a apresentação está simplesmente soberba (com grande, grande destaque para a banda sonora). Apesar de algumas das personagens serem um pouco vazias, de o jogo nos apresentar por vezes uma dicotomia que limita a experiência, e de existirem alguns problemas com a caracterização de algumas personagens, esta continua a ser uma experiência bastante sólida e que recomendamos.
Do que gostamos:
- Enredo prende-nos desde os primeiros momentos;
- Cinemáticas em estilo anime continuam bastante capazes;
- Banda sonora das melhores que poderão encontrar num videojogo;
- Quebra-cabeças são desafiantes na medida certa e muito divertidos;
- Liberdade de decidir qual o rumo da história;
- Vários detalhes interessantes que tornam o mundo mais vivo e o jogo mais diversificado.
Do que não gostamos:
- As dicotomias que o jogo propõe acabam por limitar em certa medida a experiência;
- Algumas personagens genéricas e pouco profundas, em consequência do primeiro ponto;
- Má construção e desenvolvimento de certas personagens e do seu papel, sendo Erica o exemplo mais claro.
Nota: 8/10