Existem jogos na história que conseguem marcar toda uma geração de jogadores, deixando memórias de experiências partilhadas por indivíduos de todo o mundo. Essa paixão e a nostalgia muitas vezes dão origem a remakes de fãs, na esperança de trazer ao presente jogos antigos, muitas vezes inacessíveis, mas que são experiências de jogo obrigatórias.
Era este o objetivo da Invader Studios, que se predispôs a criar um remake de Resident Evil 2. Após algum trabalho, viram-se obrigados a interromper o projeto, devido ao anúncio de um remake oficial de Resident Evil 2, por parte da Capcom. Em vez de apresentar um cease and desist, a Capcom chegou a um acordo com a Invader Studios, convidando-a inclusive para uma visita aos seus escritórios, para falarem um pouco dos futuros projectos da Capcom e da própria Invader Studios.
Geralmente, o desfecho final deste tipo de situações não é tão feliz, culminando em projetos que nunca veem a luz do dia. No entanto, a Invader Studios canalizou todos os esforços que tinham tido até então para um título original – Daymare: 1998.
Daymare: 1998 é claramente uma carta de amor não só ao género de survival horror, popularizado nos anos 90, mas também a Resident Evil, série pela qual a equipa tem obviamente tanto carinho. Isto resulta tanto a favor do jogo como contra o mesmo, e infelizmente, nem só de amor pode viver um jogo. Quanto ao enredo, não temos nada de terrivelmente original. Começamos o jogo no papel de Liev, parte de uma equipa de elite de segurança chamada H.A.D.E.S., mostrando que estas organizações devem passar demasiado tempo a tentar arranjar acrónimos engraçados para os seus nomes.
Liev é destacado para investigar umas instalações secretas, bem como obter amostras de algumas coisas que aí estavam a ser desenvolvidas. No entanto, parece que o trabalho será mais difícil do que o esperado, com o laboratório infestado de criaturas que outrora eram humanas (vá, podemos chamá-los zombies). Como seria de esperar, tudo rapidamente dá para o torto e a infeção espalha-se para uma pequena cidadezinha e bem, o resto terão de descobrir. Ao longo do jogo, para além de Liev assumimos o papel de duas outras personagens, Sam, um guarda florestal com problemas alucinogénicos, e Raven, um antigo piloto da NASA. Esta abordagem permite ao jogador ver vários fios da mesma meada, dando alguma variedade à história e ao seu desenrolar.
Até agora tudo óptimo, certo? Parece uma receita para o sucesso. Introduzir três personagens jogáveis é ao mesmo tempo interessante, mas difícil, porque implica ter um enredo que faça com que o jogador se importe com as mesmas, que crie uma ligação com as personagens. Com Liev, isso é à partida difícil porque vemos logo que a criatura é uma besta da pior espécie, sem qualquer tipo de escrúpulos, matando um inocente logo nos primeiros cinco minutos – porque ordens são ordens. Tal até poderia ser interessante e diferente, obrigando o jogador a assumir um papel de anti-herói ou até uma espécie de vilão, face ao papel usual de herói. Mas é difícil executar uma tarefa destas com sucesso quando a escrita e o desempenho dos atores são simplesmente do pior que já encontrei em videojogos, em toda a minha vida.
Não consegui não revirar os olhos quando o colega militar de Liev fez questão de comentar a tal morte do inocente com uma obrigatória exposição, com algo como “Isto faz-me lembrar daquela missão, lembras-te, em que mataste todos aqueles pobres inocentes? An, an?”. Amigos, isto não é desenvolvimento de personagens, é escrita preguiçosa. Tudo isto é dito com a subtileza e naturalidade de um touro numa loja de porcelana. Podemos atribuir esta pobre qualidade a uma eventual escolha estilística, de modo a relembrar momentos tão célebres como a Jill Sandwich, mas não… não há desculpa. Se nos anos 90 isto poderia ser atribuído à pouca importância que as localizações de jogos para o Ocidente tinham (e o respectivo baixo orçamento atribuído), nos dias que correm é só mau.
Infelizmente, no que toca à jogabilidade, as coisas não melhoram.
A Invader Studios optou por uma visão na terceira pessoa, sobre o ombro. A nossa personagem pode andar, correr (é mais saltitar, mas já lá vamos) ou fazer um sprint. Não existe a possibilidade de saltar ou de a nossa personagem se abaixar, mas até aqui tudo bem. O objetivo consiste em explorar as áreas que nos são apresentadas, com cenários um pouco lineares e com alguns puzzles por eles espalhados. Podemos interagir com diversos objetos ou partes do cenário, sempre assinalados por uma seta, existindo ainda documentos e ficheiros áudio que ajudam à criação do mundo em que se insere Daymare: 1998. Em alguns momentos, damos de caras com fechos que apenas podem ser abertos através de um simples mini-jogo de hacking. Temos de ter um item especial (um cabo de override que podemos ir encontrando pelo mundo) mas que rapidamente se parte se falharmos três vezes o mini-jogo. É simples, opcional, mas que se bem feito, nos permite aceder a salas com itens preciosos.
Como seria de esperar, o mundo está infestado por monstros – humanos que foram infectados por alguma coisa – e é aqui que entra a parte do combate, fulcral à nossa sobrevivência. Como em outros jogos do género, temos acesso a armas de fogo, e as balas (bem como os itens de cura) são escassas, o que obriga a uma boa gestão do nosso limitado inventário. Normalmente, o usual é termos a arma e as balas, usando um dos botões para fazer reload. Em Daymare: 1998 foi implementado todo um sistema de reload o mais complicado possível, para deixar os jogadores a coçar a cabeça. Primeiro, devem ter um clip, que por sua vez devem encher com balas, combinando os dois no inventário. Depois, devem fazer reload carregando no quadrado – ora deixando carregado, para fazer um reload mais lento mas completo, ora carregando apenas uma vez, perdendo assim o clip das balas. Podem e devem sempre voltar a recolher este clip, que vos terá caído aos pés, senão para fazerem reload têm de ir ao inventário, selecionar as balas e combinar as mesmas com a arma – tudo isto enquanto estão à mercê dos monstros no cenário.
Estão confusos? Não se preocupem, eu também. Todo o inventário é igualmente complicado, sendo acedido lentamente a partir de um aparelho que as nossas personagens têm no braço (ou carregando no touch pad do comando), carregando no L1/R1 para navegar as diferentes secções. Isto faz com que algo tão simples como aceder a um mapa se torne uma tarefa hercúlea de paciência, obrigando a que tenhamos a certeza de que estamos num local seguro, não vá acontecer sermos surpreendidos por inimigos enquanto só queremos dar uma olhadela no mapa. Quanto ao sistema de saves, o jogo é francamente mais simples, utilizando o já comum sistema de auto-saves, com checkpoints bem colocados e que ajudam a que a experiência não se torne frustrante caso demos de caras com um inimigo que nos dê cabo do canastro. Eventualmente durante o jogo terão acesso a uma espécie de safe rooms (à moda de Resident Evil), permitindo aceder a um sistema de saves manual.
Os inimigos são o standard que já seria de esperar de um jogo do género, com um ar claramente de zombies, mas com alguma variedade introduzida de acordo com o lugar em que estão – por exemplo, no hospital é normal encontrarem pessoal médico, bem como uma enfermeira que poderia perfeitamente inserir-se no jogo de uma outra franchise de terror. A poupança obrigatória de balas consegue ser um elemento eficaz no que toca a provocar o terror no jogador (ainda tenho pesadelos fechada numa qualquer safe room do primeiro Resident Evil, com um Hunter à minha espera lá fora e eu sem munições). Mas isto acaba por ser um ponto que vai por água abaixo quando os inimigos são autênticas esponjas de balas, não existindo a possibilidade de dar tiros estratégicos. Ou damos um tiro na cabeça bem certeiro, ou temos de lidar com animações eternas em que parece que o monstro vai cair… e vai… ai afinal não é desta, ou parece que é… e ficamos naquele vai não vai, sem saber se devemos gastar mais uma bala. A reação dos monstros quando finalmente caiem por terra é tão lenta, que muitas vezes gastei munições desnecessariamente ao achar que ainda não tinha derrotado o bicho.
As animações das personagens jogáveis também não são excepcionais, cumprindo o seu papel. No entanto, distraí-me mais vezes do que as que gostaria de admitir com a animação das personagens a correr, sendo que mais parece que andam aos saltinhos pelo cenário. Os gráficos das personagens humanas também são extremamente distrativos e as caras são particularmente mázinhas. No entanto, tenho de destacar os cenários e o ambiente que Daymare: 1998 consegue criar nas várias áreas. Sam sofre de alucinações sem os seus medicamentos e isto é reflectido várias vezes quando jogamos com ele, conseguindo ser particularmente eficaz nos corredores do hospital. A iluminação é escassa e muitas vezes apenas temos a nossa lanterna como ajuda, fazendo com que o ambiente se torne tenso e opressivo.
Existem algumas instâncias que dão um ar inacabado a Daymare: 1998, pouco polido até. Era frequente ver texturas a serem carregadas ou elementos do cenário a aparecerem à medida que me aproximava, mas o mais gritante para mim foi ver legendas e texto in-game mal escrito. Não existe desculpa para um jogo que está a ser portado para outras consolas apresentar erros como discrepâncias nas legendas face ao que as personagens estão a dizer, ou apresentar nos seus objetivos fazer algo com um “funicular” mas depois termos a personagem a referir no seu diálogo interno a utilização do “funicolar”. Dá a sensação de que a equipa nem se deu ao trabalho de rever o texto ou até o jogo, deixando uma terrível impressão.
Ao longo de Daymare: 1998, é impossível não notar o amor da equipa aos jogos e cultura de terror em geral, existindo várias referências a jogos e filmes. Deixa-me um pouco triste que este amor não tenha sido suficiente para carregar um jogo que claramente nasceu da paixão assoberbada de fãs tão acérrimos. Caramba, até conseguiram ir buscar Paul Haddad – que deu a voz a Leon no Resident Evil 2 original – para dar um ar da sua graça, acabando por ser o seu último trabalho como actor de voz, antes de falecer.
É-me difícil criticar certas coisas quando estamos a falar de projetos de equipas muito pequenas, não é possível compararmos um jogo desta dimensão a um AAA, mas existem demasiadas coisas que são impossíveis de ignorar. Daymare: 1998 poderia perfeitamente ser um excelente tributo a um género que infelizmente não conseguiu recuperar o sucesso de outrora. Poderia ser um projeto humilde, com os seus problemas, mas que se reflectisse numa experiência divertida. Infelizmente, as inspirações e referências não são suficientes para tornar Daymare: 1998 num jogo obrigatório para os fãs do género. Não é um jogo impossível de jogar ou absolutamente terrível, mas a soma das suas partes resulta num produto pouco polido e que nunca consegue passar do ponto de um filme de série B.
Opinião Final:
Daymare: 1998 nasceu do sonho de uma equipa independente de criar um remake de Resident Evil 2. Apesar de já terem o projeto avançado, o anúncio de um remake oficial pela Capcom, fez a Invader Studios transformar o seu projeto neste Daymare: 1998, um título original mas um tributo aos jogos que uniram os elementos da equipa. No entanto, as suas inspirações e ambições resultam num jogo com uma jogabilidade desnecessariamente complicada, com uma escrita e atuações fraquíssimas, ofuscando aquilo que poderia ser um jogo competente, acabando por ser um jogo cuja origem é mais interessante do que o produto final.
Do que gostamos:
- Ambiente;
- Três personagens jogáveis;
- Referências e easter eggs de terror são um mimo para os fãs do género.
Do que não gostamos:
- Escrita e atuações de voz dignas de um filme de série B;
- Gráficos sofríveis, dignos de uma PS3;
- Combate é massivamente penalizado por um sistema de reload demasiado complicado;
- Inventário e acesso ao mapa pouco intuitivos e maçudos – nem os tutoriais ajudam.
Nota: 6/10