É chegado o dia de voltar a Boletaria e refletir sobre aquele que, em muitas medidas, é “o” jogo exclusivo da PlayStation 5 na sua janela da lançamento.
Lembro-me bem de jogar o Demon’s Souls original, caloiro na faculdade, fala-se deste novo jogo difícil e estranho na PlayStation 3. Na altura passou-me, mas entretanto um amigo emprestou-me a sua cópia, que incluía um pequeno livro de dicas. “Ah, para que é isto?”, disse inocentemente, ao que me responderam “Vais precisar”. Seguiu-se uma experiência muito diferente do que era padrão na altura, mas estranhamente fascinante. A frustração inicial deu lugar a uma quase obsessão, e ao longo do jogo desenvolve-se um certo respeito pela obra. Numa altura em que não seguia, nem havia tanta informação online, este é capaz de ter sido das últimas reais surpresas e sentimento de descoberta de algo porque um amigo partilhou.
O sucesso de Demon’s Souls não foi imediato, mas depressa se criou um nicho e, tal como eu, muitas pessoas foram sendo introduzidas a este mundo. Com o sucessor espiritual Dark Souls, agora em várias plataformas, a From Software ficou nas bocas do mundo, e foram de tal forma influenciadores que se criou a noção de jogo “souls like” na indústria. Mas tudo começou com Demon’s Souls (vá, eu também experimentei King’s Field há muito tempo, mas não era a mesma coisa), que nos chega agora à PlayStation 5, libertando-se da “cadeia” da PlayStation 3, visto que nunca migrou para outras plataformas.
Entregue à BluePoint Studios, o remake de Demon’s Souls é extremamente fiel ao original. Como esclarecido pela equipa de desenvolvimento, o código original foi utilizado, e a nível de jogabilidade tudo foi mantido, sendo as novidades a nível visual, sonoro, e melhorias de usabilidade. Se estivéssemos magicamente a controlar em simultâneo esta versão e a original, teoricamente teríamos a mesma experiência, desde os espaços mantidos aos timings das animações de ataque.
Passemos então ao imediato da experiência: os gráficos. Demon’s Souls apresenta dois modos visuais, o modo de fidelidade conta com 4k nativos a 30 fps, enquanto que o modo de performance oferece 1440p a 60 fps. Sem efeitos como ray tracing no modo de fidelidade, a escolha é muito fácil para o modo de performance, que é na mesma visualmente fantástico, e oferece uma experiência de jogabilidade vastamente superior.
O desempenho de Demon’s Souls é o que os fãs de “souls games” sempre quiseram e nunca tiveram no lançamento: sólido, 60 fps sem espinhas. Por todas as coisas boas que podemos dizer sobre a From Software, desempenho nunca foi o seu forte, e aqui a BluePoint tem cartas dadas. A experiência é transformativa, suave, confortável, imediata, e inabalável ao longo do jogo. Pode-se dizer que não há efeitos visuais extraordinários, mas Demon’s Souls está extremamente detalhado, o trabalho de texturas é fantástico e os cenários estão fabulosos.
Outra novidade óbvia, e que por esta altura é o “novo normal” na nova geração, são os ganhos com tempos de carregamento. Aqui, tendo a experiência do original, é difícil exprimir quanto a experiência é melhorada. No Demon’s Souls original cada morte ou cada viagem vinham acompanhadas de longos carregamentos, o que tornava a experiência muito frustrante. Aqueles fundos castanhos com informações eram muitas vezes o suficiente para desistir e voltar mais tarde. Agora, nada disso é sequer uma consideração, com viagens pelas Archstones a serem uma questão de um par de segundos. 50 horas de jogo no remake devem ser equivalentes a talvez 80 no original.
Para os aficionados do som, as faixas originais foram trabalhadas de novo, agora com uma orquestra, e estão fantásticas, estando bastante reconhecíveis e melhoradas. Os efeitos sonoros são de grande qualidade, e é um jogo que ganha ambiente quando jogado de headphones. Com o DualSense, temos ainda uma série de sons emitidos pelo comando, principalmente coisas como o bater de espadas, que dão uma sensação de impacto. No DualSense temos ainda alguma resistência nos ataques, por exemplo quando batemos com a espada numa parede. É tudo bastante leve, e creio que apenas ajuda à experiência e se envolve bem na experiência, nunca sendo intrusivo.
Mas se o trabalho técnico é fantástico, o trabalho artístico já não é tão linear. Na grande maioria das situações, os modelos são fiéis ao original, ou boas interpretações, e certamente competentes, mas há vários modelos desapontantes, que simplesmente não capturam a essência do original, como seja o muito criticado “Fat Bandit”. Os NPCs do Nexus também estão, no geral, diferentes. Estão talvez mais naturais e certamente melhor animados, mas nota-se uma certa “ocidentalização”, que padroniza o jogo e acaba por lhe tirar algum charme do original.
Algo muito reconhecível para quem jogou ou sequer viu partes do Demon’s Souls de 2009 é a sua palete de cores, com uma certa aura verde, desfocado, quase no nevoeiro. No trailer de anúncio do remake, foi algo que imediatamente me pôs de pé atrás, perder aquela “vibe”, dando preferência a visuais mais limpos. Claro que parte do motivo da aparência original eram formas criativas de fugir às limitações da PS3, mas esta luta contra as limitações cria muitas vezes algo único. Fiquei contente ao constatar que a BluePoint oferece um modo de filtragem com várias opções, sendo um deles uma imitação dos tons de cor do original. Podemos ajustar a opacidade do filtro, e devo dizer que para mim fez que sentisse o jogo mais fiel, tendo jogado sempre com o filtro ligado a 50% de opacidade.
Para além do óbvio trabalho na parte gráfica, a BluePoint inseriu ainda várias funcionalidades que melhoram a experiência do jogo, como seja a gestão de inventário melhorada. No original, ao ter o inventário cheio, era preciso ir ao Nexus depositar os itens extras, e deitar fora coisas para apanhar itens importantes era uma constante. Agora é possível enviar diretamente os itens excedentes para o Stockpile Thomas, o que poupa viagens e frustração. É pena que não tenha sido implementado um sistema que dê mais uso aos itens, sendo que Demon’s Souls não permite vender ou trocar a maioria do itens.
Uma mudança que pode passar despercebida a novos jogadores é a introdução da possibilidade de rebolar omnidirecionalmente, algo que no original era limitado a 4 direções, e dava aso a muitas quedas desnecessárias.
No geral, o Demon’s Souls Remake opta sempre por manter as funcionalidades originais, adicionando standards modernos como o modo de fotografia, e só oferecendo algumas pequenas melhorias em mecânicas menos importantes. Como veterano da série, penso que poderiam ter melhorado algumas partes do jogo, tal como batalhas que sempre tiveram problemas no original, ou com “exploits” óbvios. Coisas como o sistema de “World Tendency” são mais óbvias agora, mas podiam também ter sido melhor trabalhados. Era também uma boa oportunidade de expandir o mundo, com a oferta de conteúdo cancelado. Da mesma forma, percebo que o público deste tipo de jogo é bastante protetor, e o remake de Demon’s Souls acaba por ser um super port, que permite a preservação de um jogo preso numa consola com várias limitações. Foi jogado pelo seguro, mas executado de forma impecável, ficando apenas manchado por algumas escolhas artísticas discutíveis.
Opinião Final:
Demon’s Souls é um fantástico remake, que traz um jogo muitas vezes esquecido até às massas, com um desempenho de sonho. As melhorias de usabilidade fazem com que passemos muito mais tempo a jogar, e é um gosto voltar a ter vida na comunidade online, desligada há uns anos na PS3. A preservação de toda a jogabilidade e narrativa são um atestado à qualidade do original, que consegue manter-se relevante após 12 anos, apenas com uma lavagem de cara.
Do que gostamos:
- Desempenho irrepreensível e que melhora imenso a experiência;
- Gráficos e animações fantásticos;
- Melhorias de usabilidade;
- Carregamentos quase inexistentes.
Do que não gostamos:
- Algumas decisões artísticas estragam algumas áreas e inimigos;
- Falta de conteúdo novo ou mecânicas que podiam ter sido retrabalhadas.
Nota: 9/10
Demon’s Souls está disponível em exclusivo para a PlayStation 5 por um PVP de 79,99€.
Esta análise foi feita na PS5, com código gentilmente cedido pela PlayStation Portugal