Há alguns anos videojogos e campanhas de financiamento coletivo eram quase certeza de duas coisas: jogos independentes de grande qualidade a alcançarem as metas em pouco tempo; e muito, mas muito, dinheiro arrecadado. Contudo, como acontece com praticamente o que quer que seja, após um gigantesco sucesso, começam a surgir todo o tipo de profissionais a tentar a mesma sorte, e nem sempre a entregar aos jogadores a mesma qualidade, e tal tem vindo a ser cada vez mais comum nos últimos anos.
Porém, um género tem conseguido escapar relativamente imune a essa maldição: os RPGs de estratégia, como o popular The Banner Saga, que já alcançou o seu terceiro capítulo, e o menos conhecido, mas igualmente indicado, Children of Zodiarcs, ambos inclusive com grande reconhecimento e divulgação pelos meios de comunicação especializados. Finalmente, em setembro de 2017 surgia no Kickstarter um projeto bastante modesto, chamado Fell Seal: Arbiter’s Mark, que tinha como objetivo reviver o estilo de jogos clássicos do género, como Fire Emblem, Advance Wars ou Final Fantasy Tactics. Será, no entanto, que um projeto tão pouco conhecido conseguiria alcançar esse feito?
A resposta a essa pergunta é bem simples: Fell Seal: Arbiter’s Mark não apenas consegue alcançar esse feito e muito menos se iguala a The Banner Saga, trata-se “apenas” do melhor jogo dentro do género de RPGs de estratégia por turnos lançado nos últimos anos. Desenvolvido pelo estúdio norte-americano 6 Eyes Studio e distribuído pela 1C Entertainment, este projeto tinha como meta 40 mil dólares e arrecadou pouco mais de 45 mil dólares, o que mostra o quanto a sua campanha infelizmente não teve o mesmo reconhecimento de outros jogos, muito provavelmente devido ao desgaste mencionado no início. No entanto, não se deixem enganar, o jogo merece muito a vosso atenção e é isso que iremos mostrar nesta análise.
Influenciado pelas obras do icónico Yasumi Matsuno, as mentes criativas do 6 Eyes Studio trazem com Fell Seal: Arbiter’s Mark uma combinação equilibrada de combates dentro do sistema de RPG’s de estratégia por turnos, e uma estória extremamente rica, não apenas em conteúdo, mas também no seu claro tom político e adulto, característica marcante também das obras de Matsuno.
A estória do jogo leva o jogador a Teora um universo de fantasia, que há muitos séculos atrás estava prestes a ser dizimado por uma grande e poderosa criatura, quando surgiram 7 heróis que, juntos, conseguiram derrotar a criatura, ficando conhecidos como “Imortais”. Durante muito tempo, estes foram a principal força de proteção daquele mundo interligado, porém, era impossível que apenas 7 heróis conseguissem controlar um mundo tão vasto e então criaram a “Ordem dos Mediadores”. Esta seria constituída por pessoas que seriam os juízes, júri e executores dos valores e ideais dos “Imortais”. Mas até mesmo os “Mediadores” foram por caminhos obscuros e a Ordem começou a sucumbir perante a corrupção.
Por fim, o caos é instaurado quando um dos Imortais decide que chegou o momento de se reformar, abrindo assim espaço para o processo de seleção do seu sucessor, algo que definitivamente está longe de ser pacífico. Dada esta sucessão de eventos, cada Imortal decide então apostar numa pessoa, que passa a ser conhecida como Campeão e que deverá seguir numa jornada individual, realizando uma série de tarefas para se mostrar digno de assumir aquela posição de poder, mesmo que essas tarefas sejam contrárias às próprias leis vigentes neste mundo.
É no meio deste caos que surge a protagonista, chamada Kyrie, uma Mediadora que não foi contaminada por essa corrupção e promete, juntamente com os seus aliados, proteger o mundo contra todas as ameaças…mesmo que venham dos lugares e posições hierárquicas menos esperadas. A aventura então tem início, com os jogadores a assumirem o comando de Kyrie e Reiner, dois dos últimos Mediadores que ainda respeitam todas as regras e valores sociais; e Anadine, a nova recruta. Estes encontram-se numa missão para prender um assassino e levarem-no para a prisão quando algo acontece, e, aquilo que parecia simples, torna-se numa trama política de proporções inimagináveis.
O grupo então viverá muitas aventuras, momentos de redenção, emoção, tensão e muito mais no decorrer das 50 missões principais e mais algumas dezenas de missões secundárias. Durante esta aventura iremos ainda obter um conhecimento aprofundado da personalidade e motivação de cada um dos personagens. Mesmo os novos membros, que vamos recrutando, têm a sua própria história e motivações para estar naquele lugar e lutar ao nosso lado, algo que apenas vem enriquecer ainda mais, mesmo que indiretamente, a história do jogo.
O combate segue os padrões clássicos de RPGs de estratégia, trazendo uma visão isométrica 2D do terreno, com os personagens a moverem-se como se estivessem num grande board game e cada um a realizar a sua ação no turno determinado e que pode ser facilmente identificado no topo do ecrã. Os personagens então possuem uma quantidade específica de quadrados nos quais se poderão mover, atacar, defender-se ou utilizar habilidades especiais e itens. Será ainda fundamental tomar em consideração o posicionamento dos personagens, já que isso determinará ainda eventuais bónus de dano ou acerto crítico caso o personagem esteja numa posição mais elevada, ou flanquear o inimigo. Isto, no entanto, também vale para os nossos inimigos, pelo que convém sempre estabelecer estratégias bem delineadas antes de cada movimentação.
Num jogo onde a própria história já possui diversas situações inesperadas, não é surpresa que o mesmo aconteça também no mapa do jogo. Não esperem que os mapas sejam meramente ilustrativos, muito pelo contrário cada um traz a sua própria surpresa e característica especiais, como caves onde novos inimigos podem surgir de maneira inesperada ou locais ideais para os nossos personagens (e claro, os inimigos) estabelecerem posições de defesa, o que adiciona aos combates ainda mais elementos de estratégia.
Outro elemento interessante que vale a pena citar e que amplia ainda mais esse sistema de estratégia é que normalmente, nos jogos do género, itens consumíveis como poções normalmente são obtidos nas lojas ou encontrados durante a exploração e, ao utilizar aquele número especifico que comprou, o jogador terá que voltar à loja ou ter a sorte de encontrar um novo item consumível. Já em Fell Seal: Arbiter’s Mark, foi feita uma opção por uma outra abordagem, já que os itens consumíveis são recuperados automaticamente após o fim de cada combate, mas são compartilhados por todos os membros da equipa e possuem um número específico de utilizações por combate. Desta forma, cabe ao jogador decidir o momento certo de utilizar cada um desses itens para que, durante o combate, outros personagens não acabem por morrer ou sair prejudicados.
No que diz respeito ao nível de dificuldade, o jogo literalmente deixa nas mãos do jogador a decisão de construir uma aventura padrão, com algumas facilidades, ou até mesmo transformar o jogo numa viagem rumo ao inferno, ao ativar o sistema de ferimento, aumentar o número de inimigos que vão aparecer nos combates, ou até mesmo ativar a morte permanente – o que significa que cada combate terá um peso considerável, já que a derrota também será o fim da vossa campanha. Estas opções permitem ao jogador definir de maneira bem específica como será a sua experiência de jogo.
Um dos elementos mais icónicos de qualquer RPG é o ganho de experiência, algo que em Fell Seal: Arbiter’s Mark acontece não após o final de combate, mas por cada ação em combate e, com os personagens a aumentar o seu nível e melhorar as suas estatísticas, terão acesso a uma gama de profissões e novas opções de combate. Desta forma o jogador poderá recrutar na loja da Guilda um personagem de qualquer uma das classes básicas e evoluir as suas estatísticas e habilidades, além de desbloquear classes ainda mais poderosas e profissões que darão habilidades específicas a cada um dos personagens. O jogo oferece, assim, mais de 20 classes de heróis, sendo que cada uma delas terá a sua própria árvore de habilidades e combinações.
A nível gráfico, o jogo não dececiona, a apostar em Pixel Art como o seu estilo artístico predominante, sendo que a cada mapa e personagem foi dada uma atenção especial por parte da equipa técnica, com desenhos à mão bem coloridos e de alta definição que não dececionam no seu resultado final. Os personagens parecem surpreendentemente detalhados para um jogo independente com um orçamento tão baixo. Igualmente os mapas, como referido anteriormente, trazem consigo uma boa diversidade de cenários e situações, sem nunca se tornarem cansativos ou incómodos, tanto a nível de jogabilidade, como no que toca ao próprio olhar do jogador, que não sofrerá com saturações.
A banda sonora, que ficou a cargo do compositor alemão Jan Morgestern, não foge ao padrão do género, com músicas instrumentais medievais que variam de temas leves e suaves até temas mais intensos que, apesar de não trazerem nada de especial, também não ofuscam a ação do jogo. Trata-se muito mais de um complemento à história do que um elemento individual a ser destacado.
A nível de longevidade e replay, Fell Seal: Arbiter’s Mark é perfeito para aqueles que desejam mergulhar por várias e várias horas (diria mesmo dias) num universo de RPG simples, mas incrivelmente rico. As vastas possibilidades de recrutamento, personalização de personagens e dificuldades, oferecem ao jogador uma experiência praticamente ilimitada, mesmo para aqueles jogadores que evitam desviar ao máximo da campanha. Além disso, será quase que obrigatório para aqueles que desejam explorar todos os pontos do mapa que regressem a pontos específicos, já que muitos deles escondem recompensas de difícil acesso e que colocarão as habilidades do jogador e dos seus personagens à prova. Aqueles que, ainda assim, se dedicarem apenas à campanha e ignorarem ao máximo os elementos de personalização e dificuldade, terão uma experiência média de pouco mais de 20 horas de jogo.
O jogo possui como uma das suas opções de idioma o Português do Brasil, uma opção que sem dúvida será muito bem-vinda, principalmente tratando-se este de um RPG com uma história de complexidade política. Porém, aqueles que desejarem outros idiomas poderão optar por Inglês, Francês, Espanhol, Alemão e Russo.
Opinião Final:
Em resumo, a 6 Eyes Studio tinha um orçamento modesto, grandes ambições ao se inspirar em séries como Fire Emblem, Advance Wars e Final Fantasy Tactics, uma concorrência dentro do género que não deixa nenhum estúdio ou jogador indiferente. Com pouca divulgação, e perante tudo isto, este estúdio provou que é plenamente capaz de entregar não apenas um bom jogo, como realmente um dos melhores (se não mesmo o melhor) RPG de estratégia já desenvolvido por um estúdio independente, o que faz do jogo não apenas indicado para todos os fãs, mas também um exemplo futuro para outros estúdios que desejem seguir o mesmo rumo.
Sendo assim, não é exagero afirmar que Fell Seal: Arbiter’s Mark conseguiu entender a essência do que é um jogo independente, ou seja, ser um jogo que apanha elementos fundamentais do género ao qual pertence, coloca à frente do projeto desenvolvedores apaixonados por aquilo que fazem e pelo projeto, e, como resultado final, temos um jogo que não é dedicado à indústria como um todo, mas especialmente aos fãs.
Do que gostamos:
- Gráficos Pixel Art que vão perfeitamente de encontro à proposta do jogo e dos seus desenvolvedores sem nunca sacrificar os visuais;
- História bem delineada e repleta de plot twists desde o início;
- Sistema de personalização, que não apenas se limita aos personagens, mas também afeta a dificuldade do jogo;
- Fidelidade ao estilo dos RPGs de estratégia clássicos;
- Opção de tradução em PT-BR.
Do que não gostamos:
- Em alguns momentos o jogo pode, mesmo na dificuldade padrão, colocar um desafio amargo aos jogadores menos experientes no género, o que pode afastar esses mesmos jogadores;
- Apesar de justificado, pelo intuito de agilizar os combates, alguns jogadores podem considerar os mapas pequenos.
Nota: 9/10
Jogo analisado através de uma cópia da versão PlayStation 4, gentilmente cedida pela 1C Entertainment.