Hell is Us – Análise

Num mercado saturado de fórmulas familiares, poucas obras conseguem marcar pela sua ousadia e personalidade. Hell is Us surge como uma raridade: um jogo que privilegia a descoberta, a reflexão e o desconforto sobre os guias, “waypoints” e extensos tutoriais. É uma aventura densa, sombria e tremendamente desafiante, que pode dividir opiniões mas que nunca deixa ninguém indiferente.

A narrativa transporta-nos para Hadea, um país dilacerado pela guerra civil, retratando não apenas a violência do conflito, mas também os traumas e as feridas abertas por uma sociedade dividida entre religiões, propaganda e medo do “outro”. Jogamos como Remi, um protagonista marcado pela busca pela família e envolto numa jornada sombria entre monstros aterradores (os Hollow Walkers) e horrores bem humanos: execuções, fanatismo, conspirações e desespero. A escrita procura referências em conflitos reais, dos Balcãs até à Ucrânia, e o resultado é um universo cru, onde tanto civis como soldados partilham histórias e rancores, lembrando-nos que a verdadeira face do inferno são as escolhas humanas repetidas ao longo da história.

Hell is Us distingue-se pelos seus fortes elementos de exploração e puzzle. Não há setas no mapa, nem instruções extensas, o jogador é verdadeiramente livre para descobrir, anotando pistas, decifrando códigos e observando o ambiente. Os desafios surgem tanto dos enigmas, que obrigam a estudar e a deduzir cuidadosamente, como dos ambientes, ricos em detalhes visuais e sugestões subtis.

O mundo de jogo, visualmente bonito, consegue ser vasto, com muitos caminhos, o que dificulta saber para onde devemos ir, sendo que não há as indicações tradicionais.

Há que elogiar a sensação de autonomia que o jogo dá, o estímulo intelectual e o ritmo pausado, que recompensa a curiosidade e persistência. Por vezes, este modelo resulta em momentos de genuíno fascínio, onde explorar Hadea e desvendar segredos se torna um exercício meditativo. Não existe “handholding”, o desconforto e o mistério são parte da identidade do jogo, que aposta num design “à moda antiga”, mas inovador, para a geração atual.

Talvez o maior trunfo de Hell is Us seja mesmo a atmosfera: o mundo está saturado de tensão, melancolia e beleza perturbadora. O contraste entre locais em ruínas, campos de batalha e zonas de silêncio absoluto é magnético. As escolhas visuais recriam os anos 90 num registo “lo-fi”, enriquecido por iluminação artística e cenários reais, conferindo à experiência uma autenticidade rara. A banda sonora eletrónica amplifica o suspense e a inquietação, sublinhando as emoções extremas em cada sequência. As personagens secundárias, os diálogos e as histórias paralelas de refugiados, soldados e fanáticos contribuem para a compreensão do mundo, oferecendo momentos de verdadeira reflexão sobre a natureza humana e as motivações individuais.

O combate de Hell is Us é funcional, apostando na ação em terceira pessoa e mecânicas que alternam entre armas convencionais (pouco eficazes contra certos inimigos) e ferramentas especiais para enfrentar os Hollow Walkers. O sistema apresenta bloqueios, desvios e combos, e embora careça de profundidade e variedade, foi aqui onde encontrei a parte mais divertida do jogo. Hoje em dia vejo muitos jogos, até demasiados e muitas vezes sem ter nada a haver, serem comparados com jogos soulslike, algo que não sou muito fã em o fazer, no entanto não posso esconder que há uma certa inspiração: rebolar, ações que esgotam a barra de stamina, como atacar, o “bate e foge” ou tentar atacar por trás, algo a que o jogo incentiva. Não há como não associar, por outro lado, não é tão punitivo. O jogo tem o seu desafio, que é significativo devo dizer, mas sem nunca ter a dificuldade de um Dark Souls ou Bloodborne. Até porque há seleção de dificuldade ao inicio, algo que pode ser mudado mid-game. Uma parte do desafio, é gerir bem os recursos, pois os ataques inimigos tiram uma boa quantidade de vida, há diversos Hollow Walkers pelo mundo de jogo, e os itens de vida são muito limitados.

Hollow Walkers são um grande pesadelo para Remi e uma ameaça no mundo de Hell is Us.

É verdade que o combate também se pode tornar algo repetitivo com a continuação, com poucas opções estratégicas. Ás vezes a câmara pode ser incómoda, e as batalhas, especialmente contra bosses, raramente fogem ao padrão de “inimigo forte, muitas vagas, pouca tática”. Mesmo com esses defeitos, há também muitas coisas boas que faz o jogo não se tornar totalmente monótono e chato.

Um ponto crítico a referir: Hell is Us exige tempo e dedicação. O ritmo é pausado, a progressão depende de notas manualmente tomadas pelo jogador, pistas para decifrar sem ajuda e uma constante atenção aos pequenos detalhes do cenário. Quem aprecia jogos sem orientações vai adorar, enquanto que para outros, pode tornar-se cansativo ou frustrante, especialmente em noites longas sem pistas e em puzzles menos claros.

A frustração surge tanto na exploração como nos puzzles, onde o jogo recusa-se a facilitar o caminho ou a oferecer soluções rápidas. É uma experiência que pede reflexão, estudo do mundo e muitas vezes recorrência aos fóruns ou guias externos, senão mesmo em walkthrough no YouTube. Há que valorizar este lado “anti-industrial” que marca pela diferença, até porque diversidade de jogos é necessária e bem vinda, sempre, mas não posso deixar de apontar que, por vezes, o equilíbrio entre desafio e acessibilidade falha.

Neste jogo há diversos puzzles, muitos deles demora-se a descobrir a sua resolução.

No que toca ao desempenho, o jogo conta com o modo “Performance” e “Quality“. Testei ambos, e não consegui jogar no modo “Quality“, como tem sido habitual com todos os jogos na verdade. No entanto, neste em particular, sente-se um arrastão de imagem maior ao virar a câmara, o que afeta a qualidade gráfica geral. Já o modo “Performance“, pode não ter uma resolução tão alta ou um Ray-Tracing como no modo “Quality“, mas a experiência é tão mais suave, e sem perda de qualidade ao virar a câmara mesmo que numa situação rápida, que dá uma sensação geral de maior qualidade gráfica. É estranho, realmente, mas como jogador, foi a sensação com que fiquei, e que na verdade tenho sentido mesmo noutros titulos. Nesse modo, senti que o jogo correu quase sempre de forma fluída, com algumas quedas de frame-rate ocasionais em áreas mais pesadas (onde havia mais coisas a acontecerem, num mapa grande, por exemplo). A interface é minimalista, reforçando a ausência de “handholding”, mas por vezes sacrifica a clareza para além do necessário, especialmente na hora de gerir inventário ou de identificar objetivos secundários. Não posso deixar de referir que o jogo tira partido das capacidades da PS5 Pro e dos controlos DualSense.

Opinião Final:

Hell is Us não é um produto para as massas, nem quer ser. Puzzles complexos, falta de indicadores para onde seguir e narrativa “fragmentada” faz parte do design do jogo, e isso vai agradar a uns, mas não a outros. A coragem da Rogue Factor deve ser destacada e até celebrada, mesmo que o jogo não seja perfeito: a atmosfera, o impacto emocional, a liberdade de exploração e a profundidade dos temas são pontos a elogiar. Embora esteja presente a sensação de repetição de inimigos, o jogo consegue divertir na parte da ação, no entanto a exigência intelectual pode afastar quem prefere aventuras mais guiadas. No fim das contas, Hell is Us destaca-se por trazer um lado menos convencional da indústria ao desafiar convenções, assumir riscos e entregar um mundo sombrio, belo e desafiante.

Do que gostamos:

  • Atmosfera densa e perturbadora, com excelente direcção artística;
  • Narrativa complexa, madura e relevante, que aborda temas universais como guerra e humanidade;
  • A banda sonora e o trabalho de áudio reforçam o suspense e a emoção;
  • Desempenho técnico sólido, com bom aproveitamento das capacidades da nova geração e do DualSense;
  • Mundo aberto que recompensa a atenção ao detalhe e a capacidade de dedução;
  • Sistema de exploração livre e puzzles desafiantes que estimulam a curiosidade do jogador…

Do que não gostamos:

  • No entanto essa exploração livre torna a progressão lenta e os puzzles complexos sem ajudas podem tornar-se cansativos, podendo gerar frustração nos jogadores menos pacientes;
  • Requer consulta frequente a notas externas ou guias devido à ausência de orientação;
  • Interface minimalista por vezes dificulta a gestão de objetivos secundários;
  • Pouca variedade de inimigos e bosses;
  • Protagonista algo genérico e pouco carismático.

Nota: 8/10

Análise efetuada com um código PlayStation 5 cedido gentilmente pela distribuidora.

 

Hell is Us está disponível para aquisição na PlayStation Store, na loja da Xbox, Steam e Epic Games Store.