Estúdios: AStory, Netflix
Nome em original: 킹덤
Estreia: 25 de janeiro de 2019
Temporada: 1ª Temporada
Realizador(a): Kim Seong-hun
Produtor(a): Lee Sung-joon, Lee Sang-baek
Autor Original: Kim Eun-hee
Elenco: Doona Bae, Greg Chun, Jun-ho Heo, Ji-Hoon Ju, Sang-ho Kim,Kim Hye-jun…
Género: Periodo Historico, Terror, Suspense, Fantasia
Inspiração: The Kingdom of the Gods
Distribuição: Netflix
Já era um desejo antigo meu trazer novos tipos de conteúdo para o Portugal Gamers e pouco a pouco venho-o fazendo através de notícias, artigos e até breves “análises” a animes (que sofreram uma paragem forçada, mas isso explico em outro momento). Faltava, no entanto, ainda uma “análise de raiz” de um conteúdo fora do universo dos videojogos, e de certa maneira é um prazer que a estreia seja com a série de Netflix, Kingdom.
O conceito dos zombies, pessoas que regressam do mundo dos vivos de maneira quase inexplicável, não é algo de tão recente, com muitos a citarem como a sua origem os antigos rituais vodu. Nestes, um cadáver seria desenterrado e reanimado por meios desconhecidos, com o objetivo de obter vingança seja daqueles que lhe fizeram mal em vida, ou daqueles que fizeram mal ao seu “mestre”. Porém, foi através do consagrado cineasta George Andrew Romero (1940-2017) que estas criaturas ganharam popularidade, já que os seus filmes fizeram com que muitos passassem a acreditar que a morte não é definitiva.
“Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos caminharão sobre a Terra.”- Zombie – A Maldição dos Mortos Vivos (Dawn of the Dead)
E justamente tendo como principal influência as obras de George Romero, em outubro de 2003, pelas mãos da Image Comic, surge a banda-desenhada The Walking Dead, escrita por Robert Kirkman e ilustrada por Tony Moore. A obra rapidamente ganhou notoriedade pela sua historia, onde a ameaça não vinha apenas daqueles que estavam mortos, mas em que existia simultaneamente uma crítica a sociedade e à reação da mesma após ser confrontada com uma situação onde leis e regras sociais desapareceram rapidamente. O sucesso desta banda-desenhada fez com que a AMC adquiri-se os direitos de produção de uma série que fez a sua estreia em outubro de 2010.
Foi esta adaptação que me fez escolher o subtítulo desta análise “Uma aula a The Walking Dead em como fazer uma série de zombies”. Quem assistiu às duas ou até às três primeiras temporadas de The Walking Dead com certeza ficou satisfeito com a adaptação, apesar de um ou outro ponto negativo. Contudo, à medida que a sua popularidade aumentava, a qualidade dos episódios foi baixando, até que chegámos a um ponto em que quem começou a ver a série em 2010, desistiu de a acompanhar, migrando para a banda-desenhada ou partindo em busca de novas obras (eu incluo-me nesta lista).
Kingdom entrou no catálogo da Netflix no dia 25 de janeiro de 2019, e, ao contrário de outras séries do serviço de streaming, não teve muita divulgação ou marketing, o que reduziu drasticamente o seu alcance e a impediu de chegar ao grande público. E este curto alcance é algo realmente triste, já que esta série – dividida em seis capítulos, com uma média de 50 minutos de duração cada -, apesar de ter elementos menos positivos, é uma obra-prima dentro do género. Traz consigo não apenas o elemento dos zombies, mas uma crítica social que pode ser aplicada até aos dias atuais e, felizmente, com muito, mas mesmo muito efeito pratico, o que é cada vez mais raro na indústria e faz muita falta.
A série sul-coreana escrita por Kim Eun-hee e com realização de Kim Seong-hun (Teo-neol) é inspirada numa manhwa (webcomic) intitulada “The Kingdom of the Gods” escrita também por Kim Eun-hee e ilustrada por Yang Kyung-il. Neste ponto, e antes mesmo de entrar na sinopse, surge já o primeiro ponto positivo da série: ao contrário de muitas norte-americanas, onde cada episódio tem um produtor, produtor executivo e realizador diferentes, Kingdom mantém a sua equipa técnica do começo ao fim, o que dá um toque bem pessoal e consistente à série. Apesar de haver momentos mais intensos em alguns episódios, a qualidade dos mesmos nunca sofre uma queda e a história mantém-se num ritmo bem equilibrado até ao final, sem perder em nenhum momento o ponto onde terminou um episódio e começou o outro.
A história da série tem início durante a Dinastia Joseon, que durou entre 1392 – 1897 na China, num momento em que o reino começa a ser ameaçado após noticias indicarem que o rei, que até então estava doente, na verdade morreu e a sua esposa e rainha (Kim Hye-jun), está a esconder esse facto da população. Ao mesmo tempo, surge um grupo que ameaça fazer um golpe de estado naquele reino, provando que o rei morreu e a rainha tem motivações obscuras para enganar a população. Como descobrimos, o mais surpreendente desta disputa política é que quem está por detrás desse golpe é o próprio filho do rei, o até então príncipe herdeiro Lee Chang (Joo Ji Hoon). No meio desta confusão, dá-se ainda plot twist e ficamos a saber que Lee Chang em breve poderá deixar de ser o legítimo herdeiro ao trono, já que é filho da antiga rainha – que já morreu -, e a atual rainha está gravida. Ou seja, caso nasça um homem, automaticamente esse será o novo príncipe herdeiro desde o nascimento.
E é justamente nesta tensão que nasce o grande ambiente da série, que transforma Kingdom numa fusão entre The Walking Dead e Game of Thrones. Não estamos diante apenas de uma série de zombies, estamos perante uma série que também explora intrigas políticas. Inicialmente Lee Chang realmente estava a preparar-se para fazer um golpe e assumir o poder, porém, tem motivações plausíveis, uma vez que a rainha realmente parece estar a esconder algum segredo – o rei não está exatamente com a doença que dizem (variola) e nem mesmo confrontada com essa contradição, permite que o filho ou pessoas importantes do reino vejam o rei e acabem com essa dúvida.
Simplificando, de um lado temos a atual rainha a tentar adiar ao máximo o momento da descoberta para que o filho dela nasça e assim manter a sua linhagem no poder, e do outro lado o príncipe herdeiro legitimo a tentar revelar o que realmente está a acontecer e a eventualmente assumir o poder. E a história não se limita a apresentar como marcantes estas personagens apenas. O pai da rainha, rapidamente descobrimos ao longo dos episódios, é o grande arquiteto por detrás de toda a intriga política, que envolve também os grandes sábios, os escolásticos, os responsáveis pelas províncias ao redor de Hanyang, entre outros – todos de alguma forma ligados a todo este drama político e…
Com certeza muitos devem estar preocupados neste momento com a possibilidade de eu ter dado vários spoilers e estragado a série. No entanto, tudo o que descrevi até agora é apresentado logo no início do primeiro episódio e, como destaquei em diversos momentos, esta é uma série de zombies também – e é justamente aí que temos um segundo plot twist e a grande crítica da série aos grandes poderes e às consequências das suas ações na população.
A rainha, além do seu pai, também conta com o apoio dos nobres, já que ao assumir o poder aumentou os impostos, o que fez com que os nobres agora estejam numa situação extremamente confortável e repleta de privilégios, enquanto que o povo está numa situação lastimável, a viver em grandes dificuldades até para conseguir comida. Enquanto isso, Lee Chang, apesar de também ser um nobre, tem uma maior proximidade com a população e entende que esta situação é insustentável, estando o povo numa situação em que se torna necessário tomar medidas extremas para sobreviver. E toda essa trama culminará numa epidemia zombie.
Aqui começam os pontos onde vou evitar entrar em alguns detalhes justamente para deixar as surpresas para o momento em que vão assistir. Mas posso desde já adiantar que realmente o rei morreu, (não se preocupem, saber disso não estraga em momento algum a história) e que um médico foi chamado ao reino, dado ser conhecido por ter em sua posse uma erva capaz de trazer os mortos à vida. Este médico aplica então esta erva ao rei, que misteriosamente volta à vida, embora sob a forma de um zombie faminto por carne humana, o que leva a que, num determinado momento, um dos assistentes desse médico acabe por se aproximar demasiado, tornando-se a primeira vítima do rei (ou pelo menos a primeira visível até então). O médico, abalado mas ao mesmo tempo consciente da situação sociopolítica, recolhe posteriormente o corpo do seu assistente e leva-o até à sua aldeia para o enterrar. Acontece, no entanto, por um motivo surpreendente, que o corpo não é enterrado e devido a isso, dá-se o início da epidemia.
Kingdom traz nos seus três primeiros episódios justamente essa construção de história e personagens. Não esperem uma série com explosões, ação rápida, uma figura central com pequenas inserções secundárias… nada disso, os dois primeiros episódios têm a presença de zombies, mas servem principalmente para construir a personalidade das personagens que vamos acompanhar durante estes seis episódios. É apenas no terceiro episódio que a situação realmente começa a aquecer e daí em diante é segurarem-se na cadeira, porque a trama vai ficar intensa. Novamente, contudo, deixo o aviso: não esperem exageros ou personagens badass, todos ali são humanos e têm uma história para contar. Todas as personagens deste universo são importates, até mesmo o guarda do príncipe herdeiro (Muyeong), que inicialmente aparece para funcionar como um simples alívio cómico, tem uma importância que será cuidadosamente explorada, o que se repete com muitas personagens que inicialmente são simples, mas que apresentam uma base que ao longo dos episódios é desenvolvida.
Algo interessante a notar, é que CGI é algo praticamente obrigatório num videojogo por ser um outro formato de entretenimento, e é totalmente compreensível quando se utiliza esse recurso gráfico e de edição por exemplo na interação com um dragão em Game of Thrones. Mas, voltando atrás alguns parágrafos encontrarão uma descrição do conceito de zombies: “…pessoas que regressavam do mundo dos mortos de maneira quase inexplicável…”. Apesar de todo o conceito místico e fantástico, ainda assim estamos a falar de pessoas, então para quê criar centenas de zombies através de um programa de computador, quando se podem contratar pessoas reais para esse trabalho e adicionar individualidade a cada um deles? Foi esta a linha de pensamento seguida em Kingdom, então haverão cenas onde centenas de zombies estarão no ecrã e todos eles são pessoas reais, todos os movimentos são feitos por pessoas reais, e é possível sentir através do ecrã a plasticidade de cada movimentação, cada ataque, cada transformação. Desta forma, temos em Kingdom um dos traços essenciais do cinema clássico, onde a quantidade está ali, é certo, mas é a qualidade o grande destaque. Sendo cada zombie único, o público é levado a sentir aquelas criaturas como reais, como criaturas que, apesar de não pensarem, têm comportamentos adaptados a cada situação, pois os seus instintos não os tornam 100% padronizados. Pelo contrário estes mortos-vivos são capazes de se adaptar a várias limitações humanas para alcançarem o objetivo de se alimentarem.
Claro que tudo isto tem um custo, e se Game of Thrones teve um orçamento pesado na sua 7ª temporada, Kingdom não fica muito atrás, já que cada episódio teve um custo médio de 2 milhões de dólares – algo que, para uma série sul-coreana distribuída através de um serviço de streaming é arriscado. O resultado, é, no entanto, primoroso. Acompanhando a série torna-se facilmente compreensível este custo, já que para além dos efeitos práticos, o realizador quis evitar cenas gravadas em estúdio. Em vez disso optaram por localizações reais e houve mesmo um cuidado especial com as roupas. Estes fatores, em parte, acabam realmente por aumentar consideravelmente o custo por episódio, mas também aumentam a qualidade da adaptação daquela ambientação. Dificilmente irão ver um cenário antigo extremamente perfeito, que parece ter sido criado ontem e estar em perfeitas condições, não mesmo. O tempo, a chuva, os elementos naturais e humanos tiveram influência naquele lugar e isso torna a série mais real aos olhos de quem a acompanha.
Outro recurso bem interessante, é que dentro da história há pontos que diferenciam estes zombies dos restantes. Obviamente, este é outro elemento que vou deixar que descubram ao ver a série, mas irei referir que apesar de não reinventar os zombies, Kingdom traz um elemento que os diferencia dos que encontramos em outras séries – e o mais interessante é que não este não é um recurso vazio só para tornar a série diferente. É um recurso que está ligado à narrativa e que, ao ser aplicado na história, permite às personagens que estamos a acompanhar que respirem e consigam organizar-se perante a epidemia. Ao mesmo tempo, permite à série e ao público parar por alguns minutos e voltar a explorar a trama política que está a pouco e pouco também a expandir-se pelas províncias.
De certa maneira, esta é uma analogia que se permite fazer em relação à história. Não é apenas a epidemia zombie que se está a espalhar por toda aquela região: os conflitos políticos, a decadência do povo, a soberba dos nobres, a revolta do príncipe herdeiro e a tentativa de o travar antes que alcance o seu objetivo, começam também a expandir-se. Esta evolução deixa o público consciente de que toda esta tensão não está localizada apenas em Hanyang, mas também nos arredores. De novo sem entrar em detalhes essenciais para o enredo, posso afirmar que haverá um ponto em que tanto o elemento político como o dos zombies colide nesta expansão.
Após todo este percurso, chegámos ao ponto que mais me fez gostar desta série: a crítica social que eu tanto mencionei em parágrafos anteriores. Para quem não acompanhou muito a cinematografia de George Romero, além deste ser o pai dos filmes de zombies e ter trazido o género para o grande ecrã, as suas obras estavam repletas de críticas à sociedade e à maneira como esta se comportava ou era vista pelos superiores. Kingdom traz esse elemento de volta muito bem e faz-nos parar para pensar. Como citei, nesse momento em que a história decorre, apenas os nobres estão a ter uma vida confortável. O resto da população é levado a cometer crimes para conseguir alimentar-se: cuidados com a saúde são inexistentes; cuidados com higiene e saneamento são zero; a qualidade da alimentação é extremamente pobre… ou seja, temos ali um foco fácil de doenças e a parte mais “suja” da sociedade, e em grande número. Contudo, quem é o Paciente Zero, ou seja, qual é o primeiro zombie que dá início à epidemia? O próprio rei, a representação máxima da pureza e soberania. Além disso, a própria maneira como essa epidemia se dissemina pelos reinos é um bom reflexo dessa critica social, já que tudo começa pela ambição daqueles que já possuem muito.
A série tem o cuidado de nos apresentar esta dimensão nos primeiros episódios, à medida que Lee Chang e o seu guarda pessoal viajam numa busca pela verdade. O público, por isso, não irá ouvir apenas falar dessa pobreza e má gestão de recursos, mas irá ver as mesmas representadas no ecrã em diversos momentos. Apesar de ser impossível comparar o acesso a recursos dessa época com o que temos hoje em dia, ainda assim é possível traçar paralelismos. Afinal, quem nos tempos atuais tem a responsabilidade de ter uma família para cuidar? Quem é que trabalhou a vida inteira e vive apenas da sua reforma? Quem é que tem uma família e perdeu o emprego recentemente e pode desfrutar plenamente da vida? Quem pode deitar-se com a cabeça na almofada nestas circunstâncias e dormir tranquilo? Então, é verdade que não temos imperadores e nem nobres, mas temos governos que muitas vezes privilegiam grandes empresas e empresários que já possuem fortunas e que continuam a ser alimentados em troca de favores e contratos, enquanto a população mesmo nos tempos atuais continua a ser vítima dessa “doença” que é a ambição de fazer o rico ainda mais rico, onde os impostos para o pobre são cada vez mais altos e os recursos básicos mais caros. Enquanto isso grandes empresas e organizações são beneficiadas com impostos baixos e grandes figuras dessas empresas exercem uma corrupção clara sobre as autoridades governativas e todos fecham os olhos, familiares são colocados em cargos que muitas vezes não possuem a menor capacidade só porque vão beneficiar alguém, etc.
Opinião Final:
Em resumo, Kingdom é uma série extremamente indicada para quem procura algo diferente num género que sofreu uma explosão de filmes e séries, mas com uma qualidade muito abaixo do esperado. Séries e filmes proliferam com o único objetivo de vender em cima do hype criado por The Walking Dead e a própria acabou por ser vitima desta tendência, à medida que as suas temporadas se sucediam. Então, se procuram uma série de zombies, na qual se poderão preocupar também com a história dos vivos e traçar paralelismos com a realidade atual, Kingdom é extremamente indicada para vós, mostrando ainda como o cinema sul-coreano está a evoluir e a produzir filmes e séries com grande qualidade, e que superam até com facilidade grandes produções europeias e norte-americanas. Bons exemplo disso para além de Kingdom, são o filme lançado em 2016, Train to Busan, o filme lançado em 2010, I Saw The Devil e A Tale of Two Sisters, lançado em 2003.
Se ficaram preocupados com o final do sexto episódio, podem deixar de o estar. A Netflix já confirmou que a série regressará para uma segunda temporada com mais seis episódios, e as suas gravações estão a decorrer desde fevereiro deste ano. A segunda temporada não tem, contudo, ainda uma data prevista de estreia.