Mortal Shell – Análise

Nunca escondi a minha paixão pelos RPGs, já desde muito jovem é o meu género favorito e apesar de ao longo dos anos ter me distanciado de jogos mais exigentes e num primeiro momento ter estranhado a proposta da From Software com Dark Souls em 2011, rapidamente tornou-se numa das minhas franquias favoritas e talvez por isso, a introdução dessa análise tenha sido tão dificil, porque Mortal Shell é o souls-like mais próximo de Dark Souls lançado nos últimos anos, mas talvez a ambição tenha sido maior do que a capacidade de alcança-la.

Desenvolvido pela Cold Symmetry, estúdio fundado em 2017 e que reúne uma equipa bem modesta de desenvolvedores veteranos da industria, Mortal Shell, traz como sua principal proposta um jogo com evidentes inspirações em Dark Souls, porém, com alguns detalhes que prometem oferecer ao jogo uma identidade própria, a começar pela sua própria narrativa que acaba por ramificar para outros elementos do jogo.

O jogo opta por um sistema bem familiar para os fãs da franquia Dark Souls, ao apostar numa narrativa explorada através dos itens, breves diálogos, descrições e o próprio cenário, porém, é notável a ausência de alguém como Hidetaka Miyazaki (criador da franquia Souls), já que o conceito está ali, mas a execução fica muito longe de ser perfeita e é muito provável que mesmo a explorar minuciosamente os elementos narrativos apresentados, o jogador ainda assim chegue ao final do jogo sem ter compreendido na totalidade o que jogou.

Um elemento interessante introduzido pela Cold Symmetry, é a “Familiaridade” onde ao encontrar e apanhar um item o jogador não tem uma noção exata da sua funcionalidade, ele então precisa utilizar aquele item para só assim descobrir qual o seu efeito e a medida que utiliza em outras situações aquele item, mais informação serão desbloqueadas e o efeito poderá ser expandido. Isso adiciona ao jogo um elemento de descoberta constante, já que a todo momento novos itens poderão ser encontrados e cabe ao jogador ampliar o seu conhecimento sobre ele, enquanto utiliza.

Outro elemento bem interessante, é justamente aquilo que dá nome ao jogo, ou seja, as “Carcaças (Shells)”. Ao contrario de outros jogos de RPG, em Mortal Shell o jogador não tem a sua disposição uma grande variedade de classes e nem uma evolução gradual do personagem através da criação de builds, na verdade, o protagonista é uma criatura extremamente frágil que precisa encontrar armaduras que um dia pertenceram a guerreiros poderosos e assim assumir aquele “corpo” para ele.

Infelizmente por tratar-se de um jogo independente, Mortal Shell não oferece uma grande variedade de armaduras, sendo limitado assim a quatro Shell onde cada um delas irá oferecer um estilo muito próprio de gameplay. Enquanto uma Shell oferece maior defesa sendo especialmente indicada para jogadores que procuram um personagem mais focado em resistência, outra Shell oferece maior Vigor o que permite ao jogador uma abordagem mais voltada para a agilidade e maior movimentação pelo cenário durante os combates.

O lado positivo nessa limitação, é que apesar de não existir a criação de build, cada Shell é totalmente diferente da outra, a permitir ao jogador não apenas apostar numa diversidade de estilo de combate, mas também, uma breve evolução muito direcionada para aquela Shell que será realizada ao utilizar “Tars” o equivalente as almas em Dark Souls.

E é no combate que talvez fique evidente um dos elementos mais interessantes e que trazem uma identidade própria ao jogo, o seu sistema de defesa. Mortal Shell não conta com escudos, na verdade o jogo oferece uma variedade bem limitada de armas de combate corpo a corpo, com apenas quatro armas (duas espadas, uma clave e um martelo), graças a isso, a defesa no jogo é feita através da mecânica de “Solidificar”, onde o jogador gasta um medidor para solidificar a sua Shell a tornar-se invulnerável por alguns segundos, e depois atacar o inimigo, realizar um ataque especial ou esquivar para alguma direção.

E aqui vale destacar a fluidez desse sistema, já que é possível solidificar o personagem em meio a qualquer movimento, então ao jogador dominar bem esse sistema, ele poderá de maneira intuitiva solidificar o personagem em meio a um movimento de ataque, que iria resultar em dano e assim anular o dano que iria receber e realizar um parry, apesar do próprio sistema de parry ser um dos pontos negativos do combate, já que dificilmente os jogadores vão encontrar um padrão, com cada inimigo a oferecer um timing diferente para realizar o parry.

Graças a isso, o sistema de combate em Mortal Shell mesmo limitado pela variedade de Shells e armas, consegue entregar ao jogador algo muito único já que cada jogador poderá abordar os combates de uma maneira mais ofensiva ou defensiva, a partir da escolha da arma e da Shell que deseja utilizar. Entretanto, é no sistema de combate que surge dois dos maiores defeitos do jogo.

O primeiro e mais evidente fica novamente pela limitação, dessa vez no moveset dos inimigos, já que principalmente os jogadores familiarizados com jogos souls-like vão perceber que a grande maioria dos inimigos possui no máximo 4 movimentos diferentes e todos eles facilmente percetível, ou seja, dificilmente o jogador irá ser surpreendido por um ataque realizado por um dos bosses presentes no jogo, já que basta alguns segundos para perceber quais ataques aquele boss possui e como identificar a sequencia de cada um deles.

E é justamente ao enfrentar os inimigos que surge o segundo problema que vai de encontro a característica mais icónica dos jogos souls-like, a dificuldade. Irei narrar a minha experiência para tornar ilustrar a minha critica negativa a curva de dificuldade presente no jogo.

Na primeira vez que iniciei o jogo, tive uma dificuldade inicial considerável mas totalmente esperada já que a introdução serve para familiarizar o jogador com a movimentação e mecânicas de jogo, principalmente relacionado a mecânica de solidificação e até esse momento o personagem não possui uma “Shell”. Entretanto, mesmo após essa introdução o jogo continuava com uma dificuldade desproporcional, com inimigos comuns a causarem muito dano na área principal que serve de ligação as outras áreas do jogo. Então apesar de ter progredido na exploração, rapidamente a dificuldade deu lugar a frustração e deixei o jogo por algumas horas, mas sabendo que teria que escrever a análise voltei a me aventurar por aquele universo e dessa vez comprometido a tentar pelo menos derrotar os primeiros bosses e qual foi o resultado? Finalizei o jogo em pouco mais de 24hrs e não apenas porque o jogo é curto, mas sim porque os desenvolvedores não souberam entregar um bom balanceamento.

O jogo é extremamente difícil no inicio, meramente porque o jogador recebe muito mais dano do que é capaz de causar nos inimigos e isso aliado ao medidor de “vigor” resulta em combates desproporcionais, entretanto, por não existir sistema de evolução do personagem, esse dano é ampliado através de um item que permite fortalecer a sua arma e isso até não seria um problema, se esse item não estivesse limitado a um total de 6 a cada vez que finalizar o jogo (em Mortal Shell o jogador pode alcançar até o NG+6) e pior ainda os 6 estão localizados antes mesmo do jogador enfrentar aquele que seria indicado como o segundo boss.

Ou seja, no inicio o jogo é extremamente desproporcional e frustrante, porém, rapidamente aliado ao moveset limitado, o jogador conseguirá enfrentar e derrotar a grande maioria dos bosses sem qualquer dificuldade, apenas a dominar o sistema de solidificação e causar dano após determinado movimento realizado por um dos bosses.

O cenario do jogo é um elemento que merece destaque, com Fallgrim a lembrar Firelink Shrine ou Majula para os fãs da franquia Dark Souls, porém, com uma importância ainda maior já que é a área com maior dimensão e complexidade de todo o jogo, com diversos locais para serem explorados e onde estão localizadas as quatro “Shells”. Além disso, Fallgrim serve de ligação para os outras 3 masmorras que o jogador irá explorar e enfrentar vários desafios, incluindo derrotar um dos três guerreiros habilidosos no jogo, que justamente ao serem derrotados permitem que o jogador receba a sua arma.

Algo importante a destacar é que Mortal Shell não oferece um sistema de viagem rápida entre esses locais num primeiro momento, a lembrar bastante o sistema utilizado pela From Software no primeiro Dark Souls, onde só depois de um determinado nível de progressão, que o jogador terá essa facilidade. Isso significa que na maioria das situações, principalmente num primeiro gameplay, o jogador irá caminhar bastante para regressar a Fallgrim após explorar e derrotar os inimigos daquele local.

Apesar de ser um jogo independente, Mortal Shell não deixa a desejar quando o assunto é gráficos, ao entregar aos jogadores cenários extremamente detalhados, com cada um dos quatro locais principais a possuírem o seu próprio bioma, além de inimigo e bosses com um design muito bem estruturado e pensado aos mínimos detalhes, desde a sua aparência, até os efeitos visuais dos seus ataques, sendo algo que com certeza vai atrair em muito a atenção dos jogadores e merece ser constantemente elogiado.

Entretanto, a atenção dada aos gráficos acabou por não ser a mesma quando o assunto é banda sonora musical e efeitos sonoros. O jogo aposta principalmente em sons ambientes, o que é esperado em jogos nesse estilo já que musicais durante boa parte da gameplay apenas iria atrapalhar, mas um dos elementos que torna muitos combates contra bosses em Dark Souls e outros jogos de combate inesquecíveis é justamente a musica e em Mortal Shell isso é totalmente inexistente. Outro ponto negativo relacionado a isso, são os efeitos sonoros, infelizmente a equipa da Cold Symmetry, não conseguiu oferecer um maior realismo nos efeitos em relação a movimentação dos inimigos, ao invés disso, a equipa optou por tornar todos os efeitos sonoros demasiado altos, isso resulta em que muitas vezes inimigos com armaduras com armaduras pesadas por exemplo, mesmo que estejam a 20 metros do protagonista, ao movimentar-se produzem sons que muitas vezes faz parecer que está ao lado, isso acaba por ser frustrante em alguns momentos, já que muitas vezes o jogador estará preocupado com inimigos que estão na sua linha de visão e ficará constantemente preocupado se não irá atacado por esse inimigo aparentemente próximo vindo por trás, só para segundos depois perceber que esse som está a vir de um inimigo que nem sequer percebeu a nossa presença e precisaria voar para atravessar obstáculos do cenário.

Algo que pode incomodar alguns jogadores, mas já era esperado devido a dimensão do projeto, é a sua longevidade, com muitos jogadores mesmo a dedicar-se bastante a exploração, a conseguirem concluir o jogo numa primeira gameplay em cerca de 9-10 horas, tempo esse que será reduzido pelo menos pela metade num NG+. Mortal Shell está disponível com legendas e descrição dos itens em PT-BR, o que é sempre um ponto positivo em jogos de RPG, principalmente souls-like onde a descrição dos itens é o principal fator narrativo do jogo.

Opinião Final:

Em resumo Mortal Shell é uma montanha-russa de experiências e sensações, com elementos excelentes e que fazem brilhar os olhos a qualquer fã da franquia Dark Souls e sentir-se novamente imerso num universo extremamente rico e sombrio, porém, ao mesmo tempo suas falhas e limitações estão sempre a lembrar o jogador que é um jogo independente e desenvolvido por uma equipa de apenas 15 pessoas.

Devido a isso, Mortal Shell mostrou-se um desafio até mesmo na hora de o analisar, já que dois lados colidiram bastante ao escrever essa analise. O lado jogador e fã de souls-like quer indicar Mortal Shell como um jogo obrigatório a outros fãs, pois entende que sendo esse o primeiro projeto da Cold Symmetry e desenvolvido por uma equipa modesta, existem espaços para erros que podem ser facilmente corrigidos numa sequela, mas o lado jornalista é incapaz de mentir ou omitir informações, já que muitas vezes analises servem para que os jogadores possam ter uma noção se vale ou não a pena, abrir a carteiro e gastar seu dinheiro naquele determinado jogo. Então ao buscar um equilíbrio, diria que se o leitor é um fã de souls-like e já tem saudade do universo Dark Souls, ele deve não comprar diretamente, mas manter-se atento ao jogo e aproveitar eventuais promoções que justifiquem o investimento, afinal, a existência ou não de uma sequela no futuro, dependerá essencialmente dos números de vendas.

Do que gostamos:

  • Uma movimentação de combate bastante fluida;
  • Mecânica de solidificar que permite uma abordagem tanto defensiva quanto ofensiva;
  • Gráficos que merecem sem duvida ser reconhecidos e amplamente elogiados;
  • A mecânica de “Shell” que apesar de limitada, consegue oferecer uma diversidade na abordagem de combate;
  • A inclusão de legendas e descrição em PT-BR algo importante em jogos do género;
  • O sistema de “Familiaridade” aumenta o fator de exploração e descoberta do jogador.

Do que não gostamos:

  • A falta de clareza narrativa;
  • Ausência de banda-sonora musical nos combates contra bosses e problemas no sound design;
  • Apesar de justificável pela modesta equipa de desenvolvimento, o jogo é demasiado limitado nas suas armas, bosses, quantidade de cenários e opções de build;
  • Falta de cuidado na hora de desenvolver a curva de dificuldade, o que resulta num jogo frustrante no inicio e demasiado fácil num curto espaço de tempo.

Nota: 7,5/10

Jogo analisado através de uma cópia da versão Xbox One, gentilmente cedida pela Cold Symmetry.