Relíquias japonesas: séries que nos marcaram #3

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À semelhança do que já foi feito pelo Joaquim e pelo Gil, com esta terceira iteração das Séries Que Nos Marcaram decidi ir um pouco mais longe e abordar não apenas uma série, mas todo um género. Quem me conhece sabe que é um dos meus géneros favoritos, um que pode ser extremamente abrangente e versátil e que se adapta perfeitamente à realidade dos videojogos – colocando-nos não só no papel de mero espectadores. O terror nos videojogos é uma experiência completamente diferente, pondo os jogadores no papel de participantes voluntários nos diversos tipos de horror que poderão enfrentar.

Poderia aqui facilmente perder-me neste mundo a falar-vos da génese dos jogos de terror e de toda a sua história. Poderia apenas falar-vos de survival horrors, considerando que estamos prestes a ver chegar um novo capítulo de Resident Evil, que poderá marcar um ponto de viragem na série. Poderia também dizer-vos que a era dourada dos survival horrors já veio e já passou. Mas com todos os grandes títulos que tivemos e que marcaram a história dos videojogos, neste artigo vou falar-vos das jóias de terror que o mundo nipónico nos ofereceu.

Antes de 1989 já tínhamos alguns títulos de terror, tanto oriundos do Ocidente como do Japão, mas foi neste ano que nasceu aquele que é considerado por muitos o “pai” dos survival horrors. Sweet Home, lançado para a NES apenas no Japão, é uma adaptação do filme com o mesmo nome, de Kiyoshi Kurosawa (que mais tarde viria a realizar Kairo, entre outros). Hoje em dia, é difícil imaginarmos a criação de um ambiente terrorífico apenas com um sistema como a NES, mas o que é certo é que Sweet Home ainda se mantém como um dos grandes títulos de terror da história dos videojogos, tendo introduzido e cimentando pequenos elementos que acabaram por definir todo o género durante décadas.

Em 1995, a Human Entertainment lançou Clock TowerApesar de ser mais um jogo que apenas viu a luz do dia no Japão, Clock Tower mantém-se como um dos clássicos do género e um dos meus favoritos. Apesar das suas origens nipónicas, a grande inspiração de Clock Tower advém do cinema de terror europeu, com diversas referências a Dario Argento e com uma personagem principal que referencia indubitavelmente Jennifer Connely, em Phantasm. Colocando-nos no papel de uma adolescente, o foco desviou-se do combate (inexistente) para a sobrevivência através da fuga. O jogador é encorajado a esconder-se do horrível Scissorman, sendo que uma confrontação directa resultaria numa morte imediata, obrigando a uma exploração da mansão Barrows e dos segredos obscuros que esta esconde. Com algumas sequelas que empalidecem face ao original, à semelhança de Sweet Home, mas numa escala menor, Clock Tower foi a influência de alguns jogos do género que ainda estavam para vir.

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Quer-me parecer que aquela cortina de chuveiro não vai proteger de muito…

O lançamento de Resident Evil em 1996 iniciou uma nova era dos jogos de terror, numa época em que vimos a criação de alguns dos maiores franchises dos videojogos assim como o nascer de alguns dos melhores títulos a agraciar as consolas caseiras. Como já mencionado, Resident Evil não introduziu muitos dos elementos que se tornaram obrigatórios no género – essa honra deve-se a Sweet Home – e podemos também facilmente dizer que decerto foi buscar inspiração a Alone in The Dark, lançado em 1992 pela francesa InfogramesResident Evil decidiu não enveredar pelas temáticas fantasmagóricas de Sweet Home ou pelos horrores Lovecraftianos de Alone in The Dark. Experiências biológicas feitas pela Umbrella Corporation resultaram nos zombies e criaturas que habitam a mansão do jogo e aquilo que inicialmente era para ser um remake de Sweet Home, tornou-se num dos melhores jogos de terror de sempre. Apesar do lançamento do claramente superior REmake em 2002, para a Gamecube, este mantem-se como um dos meus Resident Evil favoritos. Não foi o meu primeiro, é certo, mas mesmo momentos como Jill Sandwich ou master of unlocking não são suficientes para reduzir a tensão que o jogo nos consegue fazer sentir. Não me lembro de muitos jogos que me tenham feito sentir como quando me vi presa numa Save Room, com muita pouca munição, sabendo que teria de enfrentar um Hunter que provavelmente me arrancaria a cabeça.

Ao longo dos anos, Resident Evil tem sido um franchise cujo caminho tem sido, no mínimo, acidentado. Desde a mudança do molde de survival horror usado e abusado durante anos, até uma mudança para um estilo de jogo mais action oriented e até socos a rochedos, os primeiros títulos da série e o REmake serão sempre os pilares daquilo que fez Resident Evil a fonte dos pesadelos de tantos jogadores. Será interessante ver o novo rumo que a série irá levar – com uma inspiração mais do que óbvia do PT de Kojima – mas depois de alguns toques posso dizer que senti-me mais a jogar uma adaptação para videojogos de um filme de série B do estilo de Tobe Hooper do que propriamente um título Resident Evil. Mas acredito que a mudança será boa e cá estamos para ver o que virá desta nova direcção.

 

A sério Barry, sandwiches a esta hora?

A sério Barry, sandwiches a esta hora?

Em 1999, o horror tomou uma nova forma. Apesar de, à semelhança de outros títulos já aqui mencionados, se ter inspirado numa obra cinematográfica (neste caso, Jacob’s Ladder), Silent Hill conseguiu elevar-se muito acima das suas inspirações. Apesar dos terríveis desempenhos dos actores, que eram já um dado adquirido nos jogos nipónicos da altura, a atmosfera criada e os monstros que habitavam a malfadada cidade – humanos ou inumanos – fizeram com que Silent Hill se tornasse no epítome dos jogos de terror. As dificuldades técnicas levaram à criação do famoso nevoeiro que acabou por ser um dos pontos a favor da série. A desolação, todo o sentimento de solidão aliado à vontade de nos afastarmos dos poucos humanos que vamos encontrando faz com que a procura pela filha de Harry Mason seja uma demanda depressiva, mas que nos agarra e não nos larga até ao fim. A certo ponto sentir-se-ão mais confortáveis e perdidos no nevoeiro do que nos corredores escuros de Otherworld.

Quando Silent Hill 2 chegou, conseguiu em tudo superar o seu antecessor. Não é um jogo perfeito e os problemas que o afligem eram já habituais do mundo dos Survival Horrors, como os ângulos de câmara fixos e os controlos que são tudo menos fluídos. Mas mais uma vez, mostrou que é possível usar os videojogos como meio de criar algo que vai muito para além do entretenimento. Todos os pequenos detalhes são importantes, as criaturas horríveis que encontramos todas têm o seu propósito e são representações dos medos e pecados das personagens. A perda de um ente querido, o desespero leva a que James se dirija para o abismo que é Silent Hill, mergulhando numa espiral de horror que o força a enfrentar verdadeiramente os seus demónios… assim como os dos poucos humanos que vai encontrando. Se o Inferno existe, decerto que se assemelhará a Silent Hill. A banda sonora de Akira Yamaoka evoca o desespero, o horror, sem se tornar um cliché do terror. É uma peça integral do ambiente e os momentos chave da narrativa são exacerbados pelas notas melancólicas do compositor.

Acho que a casa de banho não é por aqui...

Acho que a casa de banho não é por aqui…

Como sucedeu com outros franchises, também Silent Hill se deparou com alguns percalços pelo caminho. Após três títulos excelentes, tropeçou num título em que foi colada a etiqueta Silent Hill como uma forma de vender um jogo de terror. A adaptação cinematográfica não chegou a tardar, apelando ao saudosismo dos fãs, com muitos elementos que a ligava à série, mas que infelizmente se deixou perder pelo fan service, perdendo a sua alma mais rapidamente do que Alessa Gillespie. Como tem sido com Resident Evil, temos tido ainda alguns títulos de Silent Hill, com a opinião colectiva de que são apenas uma sombra daquilo que a série já foi. A equipa original já se foi, como é habitual com franchises que sobrevivem durante anos e as tentativas sucessivas de uma sequela digna desse nome culminaram no projecto Silent Hills, liderando por Hideo Kojima. O lançamento do Playable Teaser que eventualmente se relevou num cheirinho do projecto Silent Hills foi aclamado por muitos como uma experiência aterrorizante e que seria o futuro dos videojogos. A saída de Kojima da Konami acabou por matar o projecto, que rapidamente foi retirado da PSN para nunca mais ser visto. Agora chegou a hora da opinião nada popular: confesso que não sou a maior fã de P.T. Não senti muito da alma de Silent Hill, os jump scares – cortesia da fantasminha que nos persegue – acabavam por se tornar previsíveis e a inclusão de Norman Reedus fez-me comichões um pouco negativas. Mas ao mesmo tempo não é justo julgar um jogo inteiro, aquilo que poderia ter sido, numa tão pequena amostra. A possibilidade de introduzir elementos aleatórios, tornando a experiência de cada jogador única, a inclusão de temáticas de tormento pessoal tão comuns à série são coisas que davam esperança aos fãs. Com a morte deste projecto, basta esperar que a Konami olhe para lá das máquinas de pachinko e dê uma nova oportunidade à série. De todo o modo, como dizia Humphrey Bogart, We’ll always have Silent Hill. Ou algo do género.

Em 2001, mais um grande marco chegava à Playstation 2Project Zero introduziu uma nova maneira de viver o terror, obrigando a que enfrentassem os vossos inimigos bem de frente. Ao deparar-se com os espíritos malignos da Mansão Himuro, Miku tem duas opções: ou foge ou defronta-os com a Camara Obscura. A única arma em todo o jogo é uma misteriosa câmara fotográfica que consegue capturar fantasmas. Como já mencionei na nossa análise de Maiden of Black Water, Project Zero foi uma espécie de baleia branca para mim. Aquele jogo que sempre quis jogar desde o seu lançamento, mas que infelizmente me ia escapando por entre os dedos até há uns anos. Quando finalmente lhe consegui pegar, não fiquei de todo desiludida. A história com base no folclore e rituais shinto japoneses, o ambiente pesado e a mansão decrépita que poderia muito bem ser o cenário de um J-Horror culminam num jogo em que o medo de termos de enfrentar a face distorcida de um espírito que nos quer fazer mal é maior do que todo o jogo em si. No entanto, nada me prepararia para Crimson Butterfly.

 

Torcicolos vão ser o menor dos vossos problemas em Crimson Butterfly.

Torcicolos vão ser o menor dos vossos problemas em Crimson Butterfly.

Se Silent Hill 2 é dos melhores jogos de terror de sempre, Project Zero 2: Crimson Butterfly não lhe fica atrás. O sentimento claustrofóbico não é diminuído pela utilização de uma maior localização, acompanhando as gémeas Mio e Mayu ao tentarem escapar dos horrores que assolam a aldeia assombrada. Toda a experiência é memorável, cada espírito – maligno ou amigável – tem a sua história, normalmente trágica, com os habitantes a tentarem lidar da melhor forma possível com o apocalipse sempre eminente. Diversas vezes, Mayu é ela mesma a fonte de arrepios na espinha, deixando-se levar pelos espíritos que vivem eternamente a sua perdição. Não nos podemos afastar muito dela, criando uma verdadeira ligação. As mecânicas de jogo e de combate são muito similares ao primeiro título, tendo melhorado alguns aspectos. Aqui, ainda temos um survival horror à moda antiga, mantendo muitos dos aspectos que os caracterizam – puzzles, ângulos de câmara fixos, o ênfase na sobrevivência – mas criando uma experiência que dificilmente será novamente replicada. Com todo o respeito pelo terceiro título da série e por Maiden of Black Water, o meu coração será sempre de Crimson Butterfly.

Desta era dourada obtivemos ainda diversos títulos que merecem o seu destaque, como Dino Crisis e Parasite Eve na PSX e Haunting Ground (uma espécie de sequela espiritual a Clock Tower) e Rule of Rose na PS2, cada um com a sua própria história e mantendo tudo aquilo que fez com que o género fosse tão popularizado. Mas apesar da máxima “em equipa que ganha não se mexe”, a sucessão de títulos que recorriam sempre às mesmas mecânicas datadas rapidamente se tornou cansativo. Resident Evil 4 veio rejuvenescer o género, com um maior foco na acção, mas tendo sucesso com o risco tomado. Apesar disto, as séries que popularizaram o género rapidamente começaram a definhar e começámos a ver o lançamento de muitos outros jogos que decidiram também eles apresentar a sua visão de um survival horror.

Neste momento, o terror pertence aos indies e a eles agradecemos o facto de o género se manter vivo. Ainda assim, vamos tendo odes ao terror como Until Dawn e Alien: Isolation, que mostram que o terror está vivo e recomenda-se. Com o lançamento recente de Maiden of Black Water e o novo Resident Evil, que promete levar-nos numa nova direcção, será interessante ver se o terror made in Japan irá voltar com nova força. A evolução da tecnologia e a introdução do VR poderão revolucionar o género e nós decerto que aqui estaremos para ver. Venha o que vier, o que é certo é que o terror e o desejo de o experienciar levou a que fossem criados alguns dos grandes títulos do mundo dos videojogos.