Análise – Cuphead

Quando falamos de jogos indie, normalmente invocamos algumas das melhores jóias e estúdios que mais tarde acabam por conseguir sucesso. Não são muitos, no entanto, os que conseguem chegar as estes cargos, mas a verdade é que alguns dos estúdios mais conhecidos de hoje em dia são compostos de programadores vindos desses estúdios indies que terão, de alguma forma, marcado a indústria com algum jogo que tenha ficado para a história. Quase se pode considerar Cuphead um desses jogos. Alguns anos de desenvolvimento após a sua revelação surpresa original e eis que este é finalmente lançado em exclusividade para as plataformas da MicrosoftXbox em consolas e com o selo de Xbox Play Anywhere, sendo possível também obter a versão Windows PC grátis se comprarmos a outra versão. O jogo tem vindo a gerar alguma ansiedade e entusiasmo junto da comunidade ao longo deste tempo. Mas será que cumpre com as expetativas?

Cuphead é um jogo ao mais puro estilo clássico de plataformas 2D em que corremos, saltamos e disparamos contra inimigos. O jogo apresenta-se de maneira tal que é quase como se de uma obra de arte se tratasse, com não só cenários de fundo pintados e animados à mão, mas também todas as personagens, incluindo os inimigos. Neste jogo destacam-se principalmente as batalhas contra chefes de fim de nível (os conhecidos bosses) completamente fora de série e simplesmente brilhantes. Aliás, devo deixar um aviso que esta é apenas a primeira das várias vezes que com certeza irei usar este tipo de descrição nesta análise, porque o jogo é absolutamente brilhante em variados aspectos.

A primeira batalha a dar-me realmente algumas dores de cabeça

Como já havia dito, o jogo presta homenagem aos clássicos ao estilo Contra, onde temos de nos deslocar numa certa direção matando inimigos ao mesmo tempo que nos tentamos desviar de uma “chuva de balas”. A arte presente no jogo é algo de extraordinário, remetendo-nos aos primórdios dos cartoons (desenhos animados, dos anos 20, 30 ou 40, lembrando mesmo os inícios dos desenhos animados de Walt Disney). Esta mistura de esplendor visual, juntamente com uma dificuldade extrema, acaba por proporcionar uma das experiências mais gratificantes dos últimos tempos, tanto a nível audiovisual como de jogabilidade. O jogo é uma homenagem à criatividade através da arte e, apesar de não ser o mais acessível para todos , deveria ser reconhecido por todos os jogadores pela sua qualidade.

O trabalho que o estúdio (MDHR) teve a todos os níveis, até aos mais ínfimos detalhes e efeitos especiais (num claro tributo ao estilo de cartoons clássicos das primeiras décadas do século passado) é definitivamente fenomenal e claramente uma obra de coração. Nessa altura, os desenhos animados tinham uma animação bem característica que se foi perdendo ao longo dos anos. Era marcada por exageros, situações com personagens e lugares que eventualmente hoje em dia seriam censurados e, francamente falando, algo sinistras na sua maioria. Porém, os tempos são outros e nada como uns Pokémon para fazer esquecer essa era. Toda a estrutura visual de Cuhpead é baseada nessa era da história da animação e o estúdio baseou toda a fundação do jogo nela, com resultados espetaculares.

As secções de avião são, também, fantásticas.

E do que se trata Cuphead? Bem, jogamos como Cuphead ou com o seu irmão Mugman (é possível jogar localmente a dois), os quais numa noite de apostas acabam por arriscar um pouco mais do que deviam, acabando por perder as suas almas numa última aposta, justamente contra o Diabo. A única chance de se salvarem é trabalhando para este e tornando-se coletores de dívidas de um número de personagens que também devem as suas almas, tal como Cuphead e Mugman. O jogo é composto por três mundos principais (ou ilhas), cada um com características específicas bem diferentes. Enquanto na primeira ilha encontramos florestas e campos verdejantes, o segundo mundo já se trata de um parque de diversões com várias atrações. Os inimigos que defrontamos são algo temáticos em relação à ilha onde nos encontramos, embora o constante surrealismo acabe sempre por causar surpresa.

Ao jogarmos, e à medida que somos surpreendidos com a arte visual irrepreensível, podem estar presentes por vezes tantos detalhes – dos maiores aos mais ínfimos – no meio do caos, que é compreensível não captarmos tudo na primeira vez que o jogamos. Desde a cebola gigante que nos ataca com… as próprias lágrimas, até uma princesa que nos ataca com as mais variadas doçarias (tais como gomas e cupcakes) ou os irmãos sapo que, quando iniciamos a batalha prestam (de uma forma subtil mas brilhantemente executada) uma homenagem a um famoso jogo de luta. São dezenas de detalhes e promenores tão bons que prefiro deixar cada um descobri-los por si.

Cooperatvamente, ao morrermos podemos ser “salvos” pelo nosso companheiro.

O trabalho a nível de audio também não se deixa ficar nada atrás, garanto. A banda sonora, que é composta por perto de 60 trechos musicais, foi gravada ao vivo e só adiciona mais outra camada de perfeição a um bolo visual já por si perfeito. Maioritariamente a banda sonora é composta por musicas do género jazz e ragtime, que é um estilo musical que teve o pico de popularidade nos inícios dos anos 1900 até meados da década de 1920 (no qual se insere, entre outras a famosíssima “The Entertainer”), e que estiveram ambos bastante presentes exatamente nos primeiros cartoons, a que este jogo presta o seu tributo. A relação entre a trilha sonora e a estética do jogo é, por isso, uma de encaixe perfeito, sendo mais um sinal demonstrativo da atenção dada ao detalhe em todos os níveis.

A nível de jogabilidade, devo dizer que o jogo mantém-se ao nível das qualidades que já mencionei até agora. Muitas vezes neste tipo de jogo existem certos detalhes que acabam por estragar a experiência. Na minha opinião, em jogos em que temos de ter  «reflexos de ninja», como este, um controlo da personagem que não seja, como poderei dizer, “firme” acaba por ser o seu calcanhar de Aquiles. Recordo-me de inúmeros jogos em que só por sentir os controlos algo “soltos”, acabava por sentir frustração “negativa” e sentimento de injustiça, causando assim para mim uma “morte prematura” desse jogo. Felizmente, isto aqui não se sucede. A dificuldade de Cuphead é elevadíssima, sim, porém como posso classificar a mesma? Talvez dizendo que, após ver várias vezes a mensagem de insucesso, senti uma certa frustração… positiva.

Este “rapazote” é tudo menos amoroso ou angelical.

Em primeiro lugar, confesso que algumas das vezes “morri” porque estava simplesmente a admirar algo que me fascinou em termos visuais, distração causada por todos os motivos já antes mencionados. Em segundo lugar, sendo um jogo que evoca os clássicos em termos de jogabilidade, a maior parte das vezes, o segredo para passar um certo nível é simplesmente uma questão de alguma memorização de padrões, seja dos níveis ou dos chefes de final de nível. Muitas das vezes acabamos por nos aperceber que perdemos em parte por nossa própria culpa e não por o jogo ser injusto. O jogo originalmente era para apenas ser composto de lutas contra bosses, porém, graças fundos extra providenciados pela Microsoft, o jogo cresceu e expandiu, contendo também níveis de plataformas, e mesmo de outros tipos. Este foi um dos principais motivos para o facto de Cuphead não ter ficado disponível na data para a qual estava previsto originalmente o seu lançamento.

Além do normal “corre, salta e dispara”, eventualmente vamos ganhando moedas que depois podem ser usadas para comprar vários itens, tais como novas habilidades (não descurem a smoke bomb de início, para mim das mais úteis de todo o jogo) e/ou tipos de projécteis diferentes que podem ser disferidos em várias direções. Podemos ainda comprar mais pontos de vida, que podem fazer toda a diferença naquela batalha mais complicada… mas existe sempre um senão, neste caso: só podemos equipar duas dessas habilidades. Por exemplo, muitas vezes ter mais um pouco de vida obriga-nos a abdicar de poder de fogo. Esta limitação adiciona alguma estratégia ao jogo. Cuphead pode ser jogado num modo “simples” (que é um modo mais fácil), no entanto só é possível acaba-lo se jogarmos no modo regular, que é o modo que nos permite derrotar bosses e obter os seus contratos com o Demónio.

Desde o início do jogo vemos que estamos perante algo especial.

A mensagem de “YOU DIED” (ou, “MORRESTE”) aparece mais do que inúmeras vezes perante os nossos olhos e até há uma secção do mundo que nos diz quantas vezes já sofremos esse destino. Acredito que, para muitos, não é dos jogos mais acessíveis, especialmente para os que gostam de ter uma experiência mais relaxante com os seus jogos. O jogo é difícil, mesmo difícil, embora, como já tinha dito, é (quase) tudo uma questão de aprendizagem de padrões. Mesmo assim, quase todos os bosses, apesar de terem um padrão, têm vários ataques e esses ataques podem surgir em ordem diferente da próxima vez que os defrontamos, o que mantém o desafio fresco e maléfico. por vezes será bom voltar atrás um pouco e ir tentar alguma moeda que falta para comprar algum item que pode fazer a diferença num nível mais avançado.

O jogo, apesar de viciante e entusiasmante – especialmente devido à curiosidade sobre o que virá a seguir deste boss tão difícil que acabamos de transpor – pode ser um pouco extenuante fisicamente. A necessidade de constante concentração pode realmente causar algum impacto. Por isso, a meu ver, a melhor experiência de jogo obtém-se em sessões não demasiado extensas. A nível mental também ajuda virmos “frescos” e prontos a mais umas lições de auto-controlo. A frustração positiva de que falei mantém-se, mas pode tornar-se negativa em prolongadas sessões e tentativas. O jogo é difícil, sim, mas isso é justamente o que torna a sensação de sucesso, após a conclusão da tarefa quase “hercúlea” de derrotar certos bosses, das coisas mais gratificantes que tenho sentido nos últimos tempos com videojogos

Acho que Mugman ainda não se apercebeu da gravidade da situação.

Opinião final:

Começo pela omissão quase pecaminosa de um modo online para podermos ter explosões de fúria com um amigo através do Xbox Live. Praticamente a única, ou melhor dizendo: das muito poucas falhas que existem em Cuphead. A inclusão de modo cooperativo local ajuda a apaziguar um pouco esta omissão, mesmo que eventualmente a dificuldade em certos aspectos aumente devido à presença de outro jogador, mas noutros se torne mais branda, porque podemos reanimar o nosso parceiro. Apesar disso, estamos perante um dos melhores jogos deste ano e um dos melhores esta geração, pura e simplesmente. É dos melhores espetáculos audiovisuais dos últimos tempos e de um nível de genialidade que poucos conseguem atingir. Altamente recomendado para qualquer um que se digne ser apreciador de bons jogos, arte e entretenimento no geral. Tudo isto, aliado à cereja no topo do bolo que é o seu preço acessível e o facto de ser um título Xbox Live Anywhere, torna Cuphead, no meu ver, a grande surpresa deste ano e um possível bom candidato a jogo do ano de 2017.

Do que gostamos:

  • Estética audiovisual fantástica;
  • Bastante desafiante sem ser injustamente difícil;
  • Mistura com sucesso estilo de jogo clássico com toques atuais;
  • Preço muito convidativo;
  • Iniciativa Xbox Play Anywhere que permite ter o jogo na consola e no PC.

Do que não gostamos:

  • Nível de dificuldade elevado, não sendo o jogo mais acessível para jogadores mais casuais;
  • Que pena enorme não ter um modo cooperativo online.

Nota: 9,5/10