Frostpunk – Análise

A 11bit Studios, embora já trazendo consigo alguma experiência no desenvolvimento de videojogos, principalmente para PC e plataformas móveis, apenas em 2014 ganhou uma maior notoriedade com This War of Mine, um excelente jogo de sobrevivência que coloca os jogadores perante um ambiente de grande tensão e hostilidade, no decorrer de uma guerra civil (recentemente analisámos a sua última expansão – Stories: The Last Broadcast -, onde também tecemos cometários sobre o jogo base). Embora neste jogo exista um claro foco nas vivências das várias pessoas envolvidas, ainda assim este segue um padrão onde a sensação de punição pelas ações realizadas está associada ao próprio jogo.

A forma como a punição pelas ações que realizamos se faz sentir viria a mudar completamente este ano, com o lançamento de Frostpunk, um jogo que transporta os jogadores até uma versão alternativa de Londres no século XIX, em plena revolução industrial, que misteriosamente entrou numa nova Era Glacial. Os poucos sobreviventes decidem fundar aquela que é a última cidade do planeta. Mas se já é uma tarefa extremamente difícil gerir o percurso de sobrevivência e reabilitação de um único indivíduo, quando se trata de toda uma sociedade a reerguer-se, torna-se praticamente impossível a satisfação de requisitos necessária para que a tarefa seja bem-sucedida.

O jogador terá pouco mais de 40 dias, na campanha do jogo, para criar condições favoráveis para os habitantes da cidade, que deverá estabelecer em definitivo, assim como para evoluir a sociedade e atingir vários objetivos, entre os quais descobrir o destino de amigos e até outros membros das famílias que habitam esta cidade.

Devem-se estar neste momento a perguntar: “Afinal de que maneira Frostpunk é diferente de outros jogos de sobrevivência disponíveis no mercado?”. E a resposta é de que simplesmente o jogo não demonstra nenhuma preocupação em julgar as ações dos jogadores. Se julgam que é justo e necessário realizar uma determinada ação, então sigam adiante. O objetivo é sobreviver num ambiente gélido onde a principal fonte de calor é o gerador central da cidade, mas se geriram mal a quantidade de carvão, ou precisam de poupar, e em algum momento decidem desligar o gerador… tudo bem, o jogo não vos vai julgar ou punir diretamente por isso. E sabem porquê? Porque a ética de cada um de nós irá fazer esse trabalho de maneira implacável.

Se pretendêssemos descrever a experiência de jogar  Frostpunk, a palavra central seria sem dúvida alguma “equilíbrio”, e o que ela significa a maior dor de cabeça que os jogadores irão enfrentar – como deverão imaginar, é quase impossível alcançar um bom equilíbrio numa sociedade pós-apocalíptica. A campanha tem início com cerca de 100 sobreviventes que estão prestes a fundar a cidade, não tendo sequer uma casa onde ficar. As reservas de comida estão quase a esgotar-se e muitos estão a segundos de ficarem com hipotermia ou outras doenças. Deste modo o jogador pode desde logo começar a recolher recursos para a construção de casas, mas também deverá ter em mente que é muito importante obter mantimentos, e para isso terá que construir postos de caça, que custam madeira. Enviar pessoas para caçar significa ainda um abrandamento na recolha de outros recursos, e consequentemente menos materiais para construir até mesmo casas ou carvão para o gerador. Sem estes recursos, fica também mais difícil construir enfermarias e, com temperaturas baixas, sem um lugar para se refugiarem, e sem geradores a funcionar, os poucos sobreviventes vão com certeza morrer. Isto para dizer que, ao iniciarem uma campanha em Frostpunk… preparem-se, pois serão pouco mais de 40 dias sem descanso, e constantemente a tomar decisões difíceis.

E é aqui que Frostpunk volta a mostrar as suas garras afiadas e frias ao jogador. A questão aqui não é apenas recolher recursos e construir edificações para evoluir esta sociedade e permitir a sobrevivência dos seus membros. Se pensarmos na nossa própria realidade dentro de uma sociedade, ainda falta algo de extremamente importante: as leis. Contudo, quando somos confrontados com uma situação crítica como esta, nem sempre as leis garantem igualdade de direitos e deveres.

Um dos exemplos desta vertente ocorre nos momentos iniciais da campanha, e que consiste na possibilidade de permitir que crianças saudáveis (ou não) trabalhem de maneira igual à dos adultos, mesmo que temporariamente. Se tal pode parecer um ato terrível na sociedade em que nos inserimos, como é atualmente, no universo de jogo, dada a ausência de uma bússola moral em Frostpunk, este ato torna-se natural, e, com o passar do tempo, e com as necessidades a multiplicarem-se, uma medida que inicialmente poderia ir totalmente contra a nossa ética, começa a ser  algo a ponderar, e, no final, necessário.

Apesar de nunca de uma forma forçada, Frostpunk leva os jogadores a refletir sobre questões bem atuais na nossa sociedade, afinal, o jogador irá ter um grande trabalho inicial para fazer com que aqueles sobreviventes o continuem a ser, e até de tomar decisões questionáveis, que causam um grande desconforto, de forma a alcançar um “bem maior”. Mas os dilemas não se ficam por aqui. De repente, podemos ser confrontados com a chegada de novos sobreviventes (muitas vezes irmãos, avós ou tios dos sobreviventes que já habitam a nossa cidade), que precisam urgentemente de um lugar a que possam chamar “lar”. Acolher mais habitantes, significa, no entanto, mais bocas para alimentar, mais habitações para construir, e, quem sabe, até a possibilidade de um surto de doenças que pode dizimar os sobreviventes iniciais. Ficamos então perante a questão de se devemos permitir que estes sejam integrados na nossa sociedade, ou, por outro lado, devemos “construir um muro” e dar prioridade aos que já habitavam a nossa cidade.

Apesar de o jogo não julgar a moralidade das vossas ações, estas têm consequências óbvias para a vida dos sobreviventes, sendo estas medidas por duas barras que representam a sua Esperança e Descontentamento. Ações como construir casas ou aplicar leis mais “justas” vão gerar esperança na sociedade, enquanto que leis mais pesadas ou que ignorem novos sobreviventes podem gerar grande descontentamento e consequências muito más dentro da sociedade. Irão no entanto descobrir que esta gestão, assim como tudo no jogo, tem as suas fragilidades. Reforçar a segurança da cidade, por exemplo, deveria ser algo de positivo, certo? Não necessariamente. Dependendo de como o façam, pequenas revoltas poderão começar a surgir, transformando-se do nada essas pequenas revoltas em crimes graves, e, sem o jogador notar, estará de novo a tomar uma decisão questionável, como executar um assassino para que a sua pena sirva de exemplo para aqueles que estejam a considerar seguir os seus passos, o que deixa a questão de se tal não transforma o jogador num assassino dentro do mundo do jogo. Uma morte justifica a outra? Não estaremos a substituir uma sociedade que apesar de tudo era democrática e livre por uma grande ditadura? Estas são apenas algumas das questões que poderão esperar que passem pela vossa cabeça ao jogar Frostpunk.

Com estes exemplos e questões, já dá para ter uma noção de que Frostpunk não tem o menor receio de explorar, e de deixar bem claro, que está disposto a apresentar um tom mais político ao invés de apenas uma gestão de recursos e de pessoas. Inclusive o jogo base não dá grande destaque às histórias das pessoas que ali estão. Sabemos que são sobreviventes, sabemos que alguns são crianças, e outros adultos e idosos, sabemos que alguns estão doentes e até temos nomes para os identificar, mas o seu passado – se pertenciam à classe média ou baixa, ou se já tinham cometido crimes; -, é totalmente irrelevante inicialmente (e em alguns casos durante toda a campanha). Estes são apenas sobreviventes que precisam de superar juntos este apocalipse gélido, chegando-se a um ponto em que o jogador deixa de gerir pessoas e passa a gerir números simplesmente.

À medida que o jogo avança, além do tom político, o jogo também irá apresentar uma dualidade entre a posição do jogador em governar através da força ou da espiritualidade. A religião é assim também um fator que pode ser determinante, mas lembrem-se que seguir um caminho religioso não necessariamente implica apenas tomar decisões puras e boas. Algumas decisões mais duras e impiedosas também poderão ser tomadas, e escondidas sob o “manto da religião”.

Na minha primeira campanha, demorei cerca de 8 horas a terminar o cenário principal (haverá outras opções a serem exploradas mesmo dentro da campanha) e a única certeza que tive ao completá-lo, é de que não tinha a certeza se todas as minhas decisões tinham sido corretas de uma perspetiva ética, embora muitas tenham sido necessárias para alcançar os objetivos que me propus a seguir.

Algo que pode deixar alguns jogadores frustrados, é que Frostpunk não pega o jogador pelas mãos e apresenta tudo aquilo de que precisa de maneira clara e gradual. Esta ausência de um guia mais completo por um lado é positiva já que permite que o jogador tenha uma maior liberdade para escolher o seu próprio caminho e ritmos de jogo, apenas consultando o tutorial interativo quando achar necessário. Porém, em algumas situações (principalmente em relação aos edifícios e às suas funções), essa informação não fica tão clara, o que pode levar o jogador a cometer alguns erros. Haverá também momentos em que o jogador será impossibilitado de construir determinadas edificações num local, algo até recorrente em muitos jogos do género, devido à organização do local, ruas ou mesmo relevo do terreno. Contudo, poderá acontecer em Frostpunk que o jogador fique com uma grande interrogação em cima da sua cabeça até descobrir o motivo pelo qual está a ser impedido de construir naquele local.

Estes problemas serão mais constantes justamente numa primeira experiência com o jogo, já que após concluirem a campanha pela primeira vez, terão aprendido muito daquilo que é necessário para manter os sobreviventes e a cidade em condições razoáveis. Infelizmente, tal também significa que algumas das surpresas e dificuldades que enfrentaram num primeiro momento serão consideravelmente reduzidos numa segunda experiência, prejudicando um pouco o fator de rejogabilidade do jogo.

É justamente neste ponto que surgem os novos conteúdos disponibilizados ao longo do ano e que ajudam a colmatar esse problema. O primeiro deles, lançado em setembro deste ano de maneira totalmente gratuita, intitula-se “The Fall of Winterhome”. Com este, para além da gestão do núcleo central da cidade, em determinado momento o jogador terá de enviar expedições com sobreviventes em busca de mais recursos e até de outros sobreviventes, com direito até a participação de figuras conhecidas.

Será também durante essas expedições que iremos descobrir mais sobre o que aconteceu exatamente ao mundo após a chegada da Era Glacial, e como outras sociedades se ergueram e sucumbiram literalmente ao tempo. Uma dessas sociedades é justamente a cidade de Winterhome, encontrada durante a campanha do jogo original após ter sucumbido ao inferno gélido, mas não só.

The Fall of Winterhome traz uma nova campanha que coloca o jogador como o principal encarregado da cidade, onde iremos descobrir o que aconteceu exatamente para que a mesma tivesse encontrado o seu fim. A nova campanha também expande as mecânicas de jogo, além de nos colocar numa posição ainda mais tensa, com decisões mais pesadas, e em que o mais triste é o facto de sabermos como tudo irá acabar, apesar dos nossos esforços.

Já em novembro deste ano o jogo recebeu mais um conteúdo totalmente gratuito, intitulado “Endless Mode”. Este novo modo remove por completo a limitação de tempo de Frostpunk, permitindo assim ao jogador ter maior liberdade de escolha, e aumentar a duração das suas campanhas. Este conteúdo adiciona ainda novos eventos e conteúdo narrativo à campanha do jogo, o que naturalmente expande a própria história  apresentada no jogo original, em que ainda havia muitos espaços em branco na narrativa sobre o que exatamente aconteceu neste universo predominantemente branco e gelado.

Endless Mode também adiciona um recurso direcionado para aqueles que concluíram a campanha principal, permitindo uma maior liberdade na exploração através das expedições. Com este conteúdo o jogo substitui mapas pré-definidos, por mapas gerados aleatoriamente, além de adicionar novos recursos e conteúdos que podem ser encontrados durante essas mesmas expedições. Além disso, são introduzidas ocorrências de nevões durante as mesmas, o que irá adicionar ao jogo ainda mais que ter em conta tanto na hora de planear as expedições, como no de considerar o tempo necessário para que os sobreviventes possam regressar à cidade sãos e salvos.

Opinião Final:

A 11bit Studios já tinha surpreendido muitos jogadores com This War of Mine e a sua ambientação opressora e gestão das necessidades e limitações das pessoas. Contudo, alcançou um novo patamar com Frostpunk, ao substituir o ambiente opressor por decisões que vão fazer o jogador constantemente sentir-se desconfortável e nunca estar 100% tranquilo com as leis que aplica, ou com a quantidade de recursos que tem disponível. E realmente não deveria ter essa tranquilidade, já que rapidamente uma situação banal pode transformar-se num dos seus maiores pesadelos, o que o relembra constantemente que tudo neste “novo mundo” é incrivelmente instável.

O jogo é, sem dúvida alguma, uma experiência que tem algo a dizer para além de apenas gerir recursos, construir edificações, desbloquear novos conteúdos e alcançar felicidade geral. Será realmente um jogo que irá levar o jogador a questionar-se até sobre questões políticas bastante presentes no seu próprio quotidiano. Embora não explore a personalidade das personagens, como acontece em This War of Mine, o jogo ainda assim consegue fazer o jogador sentir-se culpado pelas suas escolhas, mesmo quando sabe que algumas delas foram feitas com vista a alcançar o “bem maior”, e que talvez uma mão mais leve significasse mais mortes.

Do que gostamos:

  • Está totalmente traduzido para PT-BR (tradução foi disponibilizada juntamente com o DLC “The Fall of Winterhome”);
  • É extremamente desafiante;
  • Grande foco nas decisões do jogador e em como as mesmas irão ter efeitos não apenas no mundo de jogo, mas  também no mundo real, fazendo-o questionar sobre os próprios princípios éticos;
  • Não se deixa limitar naquilo que pretende explorar e questionar, seja através de um tom político ou religioso;
  • Atualizações com novos conteúdos, melhorias e correções com grande frequência;
  • DLCs lançados de maneira totalmente gratuita.

Do que não gostamos: 

  • Interface possui alguns problemas que prejudicam por vezes a compreensão de alguns elementos do jogo;
  • Se comparado a outros jogos do género, Frostpunk não oferece tantas camadas de personalização;
  • Devido à narrativa linear da campanha principal, o jogador poderá sentir-se pouco estimulado a regressar ao jogo após finalizar a sua campanha.

Nota: 9,5/10

Jogo analisado através de uma cópia gentilmente cedida pela 11bit Studios para PC.