Shenmue III – Análise

Há cerca de dezoito anos, no distante ano de 2001, o mundo era certamente um lugar muito diferente. Do lado dos videojogos, a Sony tinha lançado no ano anterior a PlayStation 2, a Microsoft estava prestes a lançar a sua consola Xbox no final do ano e a Nintendo adota os DVDs, embora em formato reduzido, com a GameCube. Já a Sega preparava-se para abandonar o clube dos fabricantes de hardware para se dedicar exclusivamente ao software. Não conseguindo aguentar a batalha contra a segunda PlayStation – batalha que, aliás, muitos dizem ter acabado antes sequer da consola da Sony ter sido lançada – a Sega descontinua a produção da sua Dreamcast, fazendo com que víssemos, já esse ano, jogos como Sonic Adventure 2 Battle na GameCube. Um Sonic numa consola da Nintendo? Que tempos loucos que vivíamos.

Ainda assim, a nível de software, a Sega Dreamcast foi suportada pelas casas de software durante longos anos – de facto, até 2007 com o último jogo licenciado a ser o shooter Karous da Milestone Inc.

Foi então em 2001, exatamente no ano em que a consola que trouxe o online às massas fora descontinuada, que recebemos o segundo capítulo na história de Ryo Hazuki. Um jogo fabuloso que leva a Dreamcast até ao seu limite. Inovando em praticamente tudo que o seu antecessor (e jogo de lançamento em 1999) tinha feito, Shenmue II levou-nos até Hong Kong e até à cidade amuralhada de Kowloon, na demanda de vingança do rapaz que se tornou famoso por andar nas ruas de Yokosuka à procura de Marinheiros.

Continuamos a história imediatamente a seguir ao final de Shenmue II, na vila de Bailu.

Infelizmente, por causa do crescente abandono da Dreamcast por parte da Sega, Shenmue II não sai nos Estados Unidos, apenas no Japão e na Europa (quem diria?), vindo mais tarde a ser lançado nesse território o port para a consola Xbox da Microsoft. É claro que agora, no distante futuro de 2019, podemos descarregar quase de imediato a compilação Shenmue I e II HD quer seja na PlayStation 4, na Xbox One ou no PC, onde quer que estejamos no mundo. Mas naquela data, o lançamento ocidental em exclusivo no território europeu – que nem vozes em inglês tinha, apenas legendas – obrigou muito norte-americano a importar. Eram tempos diferentes…
(Podem ler ou reler a nova versão remasterizada de Shenmue I & II HD Collection que tivemos oportunidade de analisar, aqui).

A reformulação da Sega para “casa de software”, no meio de um processo de revitalização empresarial, obrigou ao cancelamento de muitos projetos, entre eles aquele que seria o próximo episódio de Shenmue, uma franquia que embora fosse mundialmente reconhecida, contemplasse jogos de “nicho” e nunca fora campeã de vendas. Yu Suzuki, pai da franquia, tal como de muitas outras como Outrun, Hang-on ou Virtua Fighter, é colocado noutros projetos até que sai da Sega em 2009. Assim, a história de Ryo Hazuki ficou por terminar, durante 18 longos anos.

Não vale a pena recontar a história que toda a gente por esta altura já saberá, o projeto Kickstarter de Shenmue III, anunciado na E3 2015, é o projeto que atualmente possui o recorde por ser o mais rapidamente financiado. Passados 4 anos de desenvolvimento, com alguns atrasos à mistura, será que valeu a pena?

Para responder a esta pergunta é necessário colocar outra, que aliás, muitas vezes tem sido colocada quando se abordam videojogos – qual é a expectativa do jogador? Se a expectativa por Shenmue III for a de um jogo com o ritmo e mecânicas dos seus predecessores, então sim, valeu muito a pena! Se estivermos à espera de um jogo revolucionário, como Shenmue o fora em 1999, então é provável que fiquemos frustrados com o produto final.

Shenmue III apresenta-se como uma experiência genuína no seguimento dos jogos anteriores

Shenmue III começa imediatamente onde o seu predecessor terminou. Ryo chega à vila de Bailu na China, onde encontra Shenhua – a outra protagonista da franquia, e que o leva a conhecer o seu pai para que este lhe possa contar o segredo dos espelhos gémeos, Fénix e Dragão. Relembramos que os espelhos estão, entre outras coisas, na origem da morte de Iwao Hazuki às mãos do chinês Lan Di. Acontece que o pai de Shenhua está desaparecido e os protagonistas apenas encontram versões gigantes dos espelhos numa caverna misteriosa. Shenhua lembra-se da lenda do homem que viria do oriente ter com uma mulher, e que esta esperaria por ele. Estava predestinado!

Após um rápido retomar da premissa do jogo, Ryo e Shenhua partem à procura de Yuan, o pai de Shenhua. Pelo caminho terão de explorar duas áreas enormes, falar com imensa gente e Ryo, em especial, terá de treinar imenso para ficar mais forte. Naturalmente que o mundo de Shenmue III, tal como o dos predecessores, é um mundo extremamente imersivo, sendo possível falar com toda a gente – mesmo! É incrível a forma como podemos perguntar a qualquer pessoa que está sentada num café qual a direção para o mercado, ou então a que horas é que um pedreiro está em casa, e é nos dada uma reposta – o mundo de Shenmue era fluido e realista há 20 anos atrás e continua a sê-lo agora!

Os minijogos de apostas estão de volta, assim como os jogos de arcada, nos primeiros Ryo poderá ganhar tokens especiais que poderá trocar por prémios. Se quiser, poderá vender os prémios e fazer dinheiro. E o dinheiro é importante em Shenmue III, isto é, sempre foi, mas nesta versão toma uma importância acrescida. Isto porque Ryo está constantemente a perder vida com a mecânica da “fome”, necessitando de se alimentar – e bem! Quer seja antes dos combates, quer seja antes de treinar ou de trabalhar para fazer dinheiro (é possível cortar lenha na primeira metade do jogo). Não é só com a passagem do tempo que Ryo tem que se preocupar, tendo também de consumir comida para ter a sua vida no máximo, de forma a estar preparado para os combates.

As arcades estão de volta, com jogos novos e outros já conhecidos!

E que combates estes são! O sistema anterior de combate foi abandonado e substituído por um sistema mais simplificado – é possível programar o botão R2 para os ataques especiais – mas também mais duro! Se não soubermos os que estamos a fazer é provável que não sobrevivamos a muitos dos combates! Ainda bem, então, que o jogo nos dá a oportunidade ampla de treinar os nossos golpes com imensos NPCs, de combater em templos com monges, de ganhar resistência através de exercícios, e assim ganhar mais vida. Sempre tivemos pena que o sistema de combate nos outros Shenmues prometesse muito, mas acabasse sempre por nunca se desenvolver de forma adequada. Shenmue III resolve este problema através de uma oferta ampla a nível de combates, permitindo-nos subir de nível não só no ataque, mas também na defesa, tudo resultando num Kung-Fu mais forte!

Do lado da exploração, Shenmue III captura perfeitamente a sensação “Shenmue” de andar nos vários locais a espreitar os vários objetos espalhados pelo mundo, desde abrir gavetas a colecionar os brinquedos que saem nas cápsulas, falar com as pessoas, investigar os vários mistérios, até mesmo jogar um ou dois jogos de QTE (entre outros) para passar o tempo.

Shenmue III é uma carta de amor aos fãs desta série, capturando perfeitamente aquela sensação e nostalgia do final dos anos 90. É verdadeiramente um jogo Shenmue e não uma sequela com o mesmo título, mas com mecânicas do jogo diferentes. Os fãs queriam Shenmue e Yu Suzuki mais que cumpriu com o prometido. As cerca de 40 horas de jogo não acabam a história de Ryo, mas avançam-na até a um ponto em que podemos pedir o próximo episódio e sabemos que ele poderá muito bem tornar-se realidade.

É possivel treinar Ryo de várias maneiras de modo a subir de nível as várias qualidades do seu Kung Fu!

O cuidado com os detalhes no mundo criado por Yu Suzuki aparece nas pequenas coisas, essa é a sua metodologia, está provado. Veja-se por exemplo o novo trabalho com as empilhadoras! De vez em quando aparecerá uma nova máquina arcada que podemos transportar, ficando a mesma depois disponível na arcada e, assim, desbloqueia-se um minijogo novo. É possível colecionar plantas e até mesmo vendê-las para ganhar dinheiro, ou então pescar e tentar apanhar vários peixes com os mais variados tamanhos. As conversas que Ryo tem todas as noites com Shenhua, contando-lhe sobre o seu mundo e a sua vida, dão credibilidade à relação que se começa a formar entre as duas personagens, é algo muito íntimo e bonito e dá imensa personalidade aos protagonistas.

A melhor inovação, por assim dizer, será a nível gráfico, já que o jogo utiliza a Unreal Engine 4. As personagens têm um ar moderno, embora alguns NPCs pareçam verdadeiros bonecos. É clara a diferença entre as personagens principais e as secundárias. Ainda assim, a quantidade de detalhe conferida a este mundo é de notar, já que passamos imenso tempo a olhar com atenção para os cenários e para as coisas que estes contêm. Já a nível sonoro, o jogo conta com os mesmos efeitos sonoros que os outros títulos, desde os sons que avisam que adquirimos um item, até à batida tradicional japonesa quando vemos pela primeira vez um golpe novo – tudo muito Shenmue, tudo muito perfeito! A nível musical, o jogo tem faixas novas inspiradas no ambiente onde a narrativa decorre – a China – tendo também alguns remixes de temas anteriores da série, o que também calha muito bem e dá um toque de nostalgia.

Shenmue III é um jogo bonito! As personagens estão melhor que nunca!

Falando em nostalgia, em certos momentos Ryo lembrar-se-á de personagens de jogos anteriores, como o seu pai Iwao, entre outros – passando um pequeno clipe dos jogos anteriores. É ainda possível fazer uma chamada telefónica a algumas das personagens anteriores e saber o que se passa com as mesmas, muito realista.

Opinião Final:

Shenmue III encapsula perfeitamente o design de videojogos revolucionário do final dos anos 90 na última consola da Sega. Poderá é não ser revolucionário hoje em dia, passados 18 anos, mas não era isso que se queria do próximo capítulo de Shenmue. As suas inovações existem em prol da continuidade do ritmo e das mecânicas que fazem da franquia aquilo o que é, não quebrando a sensação fantástica que é estar novamente no papel de Ryo Hazuki. Será para toda a gente? Claro que não o é! É jogo de “velho”, é um jogo de quem passou a sua adolescência pelas ruas de Yokosuka, a conduzir empilhadoras e a lançar bolas metálicas nos painéis de madeira do Lucky Hit. É um jogo para quem aprecia que nem todos os jogos têm de adotar mecânicas modernas e facilitadoras da jogabilidade. É um jogo que se insere numa categoria que, particularmente nos dias de hoje, é cada vez mais sua. Acima de tudo, é verdadeiramente um Shenmue!

Do que gostamos:

  • História de Ryo Hazuki continua!
  • As mecânicas de Shenmue estão intactas e cheias de nostalgia, num mundo novo, numa aventura que leva Ryo a sítios novos!
  • Combate foi imensamente melhorado;
  • A apresentação, quer gráfica, quer sonora, é muito boa!

Do que não gostamos:

  • Mecânica da “fome” acaba por ser frustrante, mas força a existência de um certo ritmo agradável no jogo, em que é necessário ganhar dinheiro para comer.

Nota: 10/10